OS DIAS DO ABANDONO À BEIRA-MAR
Agosto 26, 2015
J.J. Faria Santos
Imagem: Michele del Campo (Courtesy of www.bertc.com)
São dias de abandono: ao mar, ao sol, ao torpedear das rotinas (mesmo com a criação de novas rotinas…), ao deambular sem propósito definido, à tirania da indolência. Ouço idiomas diversos (francês, espanhol, inglês, italiano, alemão) e a minha profunda natureza provinciana cede espaço ao meu cosmopolitismo de espírito.
Os meus dias do abandono em Agosto são também os de Olga, a mulher que protagoniza o romance de Elena Ferrante, a quem, num incerto dia de Abril, depois do almoço, o marido anunciou que iria deixar. Oriunda de uma família “sentimentalmente ruidosa”, Olga, que na adolescência “sentia a opressão de uma vida sem silêncio”, depois de concluir que “a alma não passa de um vento inconstante”, entra numa espiral de descontrolo emocional onde se encadeiam estupefacção, raiva e retaliação. Os Dias do Abandono, como escreveu James Wood na revista The New Yorker, expõem “uma mente em estado de emergência, nos limites da coerência e da decência”.
Abandono por momentos o areal. Calcorreio o asfalto. A feira do livro, situada numa espécie de tenda, acolhe-me. Percorro-a não muito lentamente mas com critério. Estugo o passo diante de Shakespeare, mas apenas até num relance panorâmico descobrir um livro de fotografias de Helmut Newton. Folheio-o, mas não o adquiro.(Mais tarde corrigirei este erro.) Prestes a deixar para um outro dia uma visita mais demorada, eis que deparo com um Eugénio de Andrade em formato livro de bolso. Estava encontrado o rival da Ferrante neste querido mês de Agosto. E estavam encontrados os três versos que podem resumir qualquer Verão: “E no teu rosto aberto sobre o mar / cada palavra era apenas o rumor / de um bando de gaivotas a passar.”
Estendo-me na toalha. Criaturas alimentadas a sol palram sem parar e criancinhas certamente adoráveis guincham como se testassem os pulmões. Felizmente, a hora do almoço aproxima-se, e o sol não lhes basta: partirão em breve em busca de sabores para acalmar os estômagos. “Olha a bolinha!”, apregoa alguém. “Com creme e sem creme!”.
A manhã é para o exterior ensolarado; a tarde é para a sombra nos interiores almofadados. Elena e Eugénio habitam os dois mundos, mas só no último cantam ao desafio, com o volume quase no máximo, Rebekah Del Rio (Llorando), Barry Manilow (Copacabana) e Grace Jones (La Vie en Rose).
(Crónicas do Mal de Amor, de Elena Ferrante, foi editado pela Relógio d’Água em Maio de 2014. O volume que inclui as obras de Eugénio de Andrade Primeiros Poemas, As Mãos e os Frutos e Os Amantes sem Dinheiro foi editado pela Quasi Edições em Novembro de 2006.)