OS DIAS DA INFÂMIA
Outubro 15, 2023
J.J. Faria Santos
Voltaram os dias da infâmia ao Médio Oriente. Na verdade, não voltaram, estiveram adormecidos na nossa consciência vulnerável e volúvel perante os estímulos dos média e do fluxo da informação em geral. E das trincheiras confortáveis das suas habitações, manejando como armas os gadgets que os ligam ao ciberespaço, os activistas das redes sociais trataram de separar as águas, carregar na adjectivação, rasgar as vestes, reclamar para si a clareza moral e o monopólio da humanidade, bloquear e cancelar os que não subscreveram os seus pontos de vista. É verdade que houve quem se pusesse a jeito e se enredasse em formulações que se pareciam recusar a reconhecer a ignomínia de um ataque terrorista a civis. Há momentos em que a adversativa queima, em que a nuance indigna, em que o enquadramento se aproxima perigosamente da desculpabilização.
A jornalista palestiniana Fatima Abdulkarim escreveu no Guardian que “atacar civis, independentemente do lado que perpetra a violência, exclui qualquer aparência de honra”. Como não concordar com ela, face a uma orgia de violência cuja única motivação foi espalhar o terror indiscriminadamente? Qualquer pronunciamento teria de começar por aqui.
Parte de um povo expulso do seu território, outra parte confinada a uma parte dele, destituída de vários direitos cívicos, expropriada e confrontada com a expansão dos colonatos judaicos, em situação socioeconómica periclitante vivendo numa “prisão a céu aberto”, é um cenário que não pode servir de justificação para o cometimento de crimes de guerra. Mas também não podemos cair no erro de olhar para o Hamas como o representante do povo palestiniano. Como escreveu Clara Ferreira Alves no Expresso, o Hamas “governa Gaza com mão de ferro, é uma feroz ditadura militar e tem contribuído largamente para a miséria física e espiritual dos palestinianos do território, apanhados num torno que os esmaga e os deixa à mercê de invasões, bombardeamentos e ataques de Israel”.
Em Abril de 2002, face a uma “temível violência” que ameaçava a coexistência, a revista Newsweek avançou com um modesto plano de paz, baseado no trabalho até então feito por “negociadores que se bateram, com a paciência de Job, para encontrar um meio termo”. Nele se previa a troca de territórios, o estabelecimento do estado palestiniano e a normalização das relações; a partilha de Jerusalém, que serviria como capital dos dois estados; a renúncia ao “direito de regresso” dos refugiados palestinianos em troca de compensações pela comunidade internacional como parte de um plano de desenvolvimento regional; a existência de forças policiais palestinianas, com “armas ligeiras” para manter a ordem interna, mas sem capacidade ofensiva; uma força internacional que supervisionaria quer a soberania da Palestina sobre as suas fronteiras quer a retirada gradual das forças israelitas do Vale do Jordão.
Na mesma edição em que delineava um plano de paz, a Newsweek editava um texto de Fareed Zakaria intitulado Secretary of State Ariel Sharon, onde lamentava a atitude “laissez-faire” do presidente Bush perante Sharon, cujo objectivo, escreveu, era “mutilar a Autoridade Palestiniana, e, por conseguinte, o instrumento do nacionalismo palestiniano colectivo”. O artigo de Zakaria continha uma frase que, passados 21 anos e com outros protagonistas, mantém a actualidade: “Israel não consegue sobreviver como uma democracia sem a paz com os palestinianos.”
Agora, no rescaldo da barbárie e na iminência da retaliação desumana, a paz está ligada às máquinas e a solução dos dois Estados parece um monstro idealizado por um cientista político alienado da realidade. A potência ocupante, condenada como tal pela ONU, bem como pela expansão ilegal dos colonatos e pelas condições de vida dos palestinianos, vai mergulhar de cabeça no tempo da vingança. Recuso-me a ser empurrado para o aviltamento de recorrer à comparação de atrocidades para escolher uma barricada. E parece-me evidente que um povo mártir que foi alvo de um projecto de extermínio não se pode deixar consumir pelo desejo de desforra e prescindir da sua humanidade. O povo vítima do Holocausto embalado pela valsa da represália vai dançar com a limpeza étnica?
Imagem: Newsweek, Abril de 2002, visão esquemática do plano de paz