O PRESIDENTE CONTRA O PARLAMENTO
Outubro 27, 2015
J.J. Faria Santos
Imagem: blogue paginaglobal.blogspot.com
O teor do discurso proferido na passada quinta-feira pelo Presidente da República ratifica a existência de uma coligação PSD-PP-PR. Nenhuma cooperação estratégica, nenhuma virtuosa e imaculada invocação do interesse nacional justifica o tom engagé por um lado, e discriminatório e de exclusão por outro. E prova que o Presidente de Portugal nunca foi o Presidente de todos os portugueses.
O Presidente adoptou como seu o discurso do medo (“Devo, em consciência, dizer aos Portugueses que receio muito uma quebra de confiança das instituições internacionais nossas credoras, dos investidores e dos mercados financeiros externos”), e parece mais sensível às pressões políticas externas e às instituições financeiras que ao respeito pela Constituição e pelos mecanismos democráticos de formação de Governos.
O Presidente da estabilidade é agora o principal factor de instabilidade – prefere uma minoria ideologicamente próxima a uma maioria que o repugna; o grande castigador das querelas inúteis é agora o instigador das intrigas, dos apelos à dissidência e da agressiva tentativa de imposição da sua vontade.
Cavaco Silva sabe que um Presidente “não pode deixar-se arrastar por pulsões emocionais ou afectar pelas tensões que sempre emergem dos tempos de crise”. E que em “situações de crise” os “agentes políticos e sociais” colocam-se “frequentemente em posições de antagonismo e conflito, o que reclama uma intervenção arbitral, acrescida mas discreta, do Presidente da República” (Prefácio – Roteiros VII). Ele sabe isto tudo. Mas contrariado nos seus intentos resvalou para a irritação e para o amuo. E ignorou que um árbitro deve ser imparcial, regular o jogo democrático, mas não interferir grosseiramente na táctica e na estratégia dos líderes partidários.
Mas o próprio Cavaco Silva já respondeu à pergunta se um Presidente deveria forçar a alteração da posição de um partido no sentido de o coagir a entendimentos com outro, com o intuito de formar um Governo. “Há quem tenha a ilusão de que o Presidente da República pode impor aos partidos, contra a vontade destes, a sua participação em governos de coligação, por vezes apelidados de ‘salvação nacional’” (Oh, se há!) “...mesmo admitindo que o Presidente, através de uma forte pressão, consiga alterar a posição e a estratégia de um partido, levando-o a aceitar, a contragosto, coligar-se com outro para formar governo, entendo que não o deve fazer. A solução de governo que daí resultaria, não correspondendo a uma autêntica vontade de coligação estável e duradoura, seria sempre artificial e precária, consumindo-se rapidamente em lutas internas e dando lugar a uma instabilidade política muito prejudicial ao País.
Se um partido manifesta a posição firme de não querer coligar-se com outro, designadamente por este não lhe merecer confiança ou por com ele manter profundas divergências quanto ao rumo da governação, não poderão o empenhamento e a influência do Presidente, por maiores que sejam, criar condições de solidez e durabilidade governativa onde à partida não existem, como, aliás, a história da nossa democracia o demonstra à saciedade.” (Prefácio – Roteiros VI – Março de 2012)
Parece evidente que o Presidente Cavaco Silva de 2015 não concorda com o Presidente Cavaco Silva de 2012. Mudou de opinião. Ou mudaram as circunstâncias, os protagonistas e a natureza das relações político-institucionais. Sem esquecer, claro, a sua subjectiva, maleável e difusa noção do interesse nacional. A forma como na prática afrontou o Parlamento deve ser qualificada como “uma falta de lealdade institucional que ficará registada na história da nossa democracia”.
P.S: Uma referência de um politólogo na RTP 3 levou-me a ler um artigo de Ambrose Evans-Pritchard no site do The Telegraph (Eurozone crosses Rubicon as Portugal’s anti-euro Left banned from power). O colunista conservador considera que Portugal entrou em “águas políticas perigosas” e que, pela primeira vez desde a criação do euro, partidos eurocépticos foram impedidos de tomar o poder com o argumento do interesse nacional. Fazendo notar que isto constitui uma subalternização da democracia, nota que os mercados reagiram com calma e atribui essa reacção ao papel do Banco Central Europeu. Mesmo que a principal motivação do autor assente no seu próprio eurocepticismo, é difícil não dar razão a Evans-Pritchard quando ele afirma que “os conservadores portugueses e os seus aliados nos media se comportam como se a esquerda não tivesse o direito legítimo de aceder ao poder”, e acusa Cavaco Silva de “usar o cargo para impor uma agenda ideológica radical”.