O PIANISTA PÚBLICO
Maio 14, 2023
J.J. Faria Santos
A culpa é da vontade. E do talento. E da sensibilidade. Hugo. 21 anos. Desempregado. Ex-copeiro de restaurante. Gostava de “acabar o 9º ano e seguir e estudar electrónica”. Toca piano em pianos públicos porque tem “mesmo vontade de tocar”. A compulsão da performance não vem de um desejo narcisista de celebridade ou de um apelo lúdico. É uma forma de expressão irreprimível de uma identidade. Se a poesia é para comer porque é que a música não pode ser um bem de primeira necessidade?
O Hugo precisa de novas oportunidades e Portugal não lhe deveria falhar. Na “geração mais qualificada de sempre”, fruto de uma paixão desalmada pela educação, há quem se entregue a uma paixão mesmo sem uma educação formal. Há quem na cauda da escala social se aproprie benignamente de espaços públicos para acariciar as teclas de um piano de cauda, surpreendendo os espectadores acidentais com a espontaneidade ou o improviso, criando uma inesperada banda sonora para o quotidiano.
Num espaço público saturado de profissionais da indignação, influencers traficantes de banalidades, aristocratas do pensamento e sumidades desdenhosas de um país demasiado pequeno para a sua sapiência ou para o seu dom, é um bálsamo que os holofotes do reconhecimento, nem que seja por breves momentos, incidam sobre um jovem negro anónimo sentado a um piano envergando uma T-shirt branca com o rosto de Bob Marley. O mesmo Bob Marley que cantou em Concrete Jungle: “Must be somewhere (sweet life) to be found (somewhere, somewhere for me) / Instead of a concrete jungle / Where the living is harder (in a concrete) /Concrete jungle (jungle)”.
Imagem: The Pianist de Aisha Haider (artmajeur.com)