O PASSADO, O FUTURO, A SOLIDÃO E O SILÊNCIO
Janeiro 16, 2018
J.J. Faria Santos
Escolhemos o passado que queremos, mas não quando queremos. Por vezes, ele impõe-se perante nós, parece rasurar cruelmente as boas memórias e esfrega-nos na cara os fracassos, as insuficiências e as más escolhas. É disto que fala Sandro William Junqueira quando escreve em Quando as Girafas Baixam o Pescoço (Editorial Caminho):”Por que é que o passado tem esta perna alta, esta passada larga? Para onde quer que vá apanha-a com o seu braço comprido e toca-lhe no ombro para logo descoser o dique das recordações. E o rio galga as margens e inunda o terreno baldio do seu desespero. A memória é a âncora que nos prende ao Inferno.”
O futuro é também o envelhecimento. “Acumulamos cansaço sobre cansaço ao longo do comprido túnel do tempo, como mantos que se sobrepõem nas costas, para as dobrarem”, escreve S. W. Junqueira. Podemos valorizar a experiência, a maturidade, a serenidade (por vezes uma máscara da resignação) com que lidámos com as contrariedades, mas a fadiga está lá. A partir de certa altura, o inventário das perdas está demasiadamente presente e não há vida diariamente reinventada que o possa fazer esquecer. Continuamos a acreditar na luz ao fundo do túnel do tempo, mas interrogámo-nos com maior frequência acerca da sua resistência e durabilidade. Um sopro mais ou menos intenso extinguirá a chama? Teremos engenho para a reavivar?
A generalidade das pessoas vive no terror da solidão. Do fracasso de todas as fórmulas de conjugalidade, do abandono, da redução ao estado de pária social. E sobretudo da situação extrema em que a perda de autonomia possa conduzir à mais abjecta miséria humana. Na teoria geral do mundo do senso comum, a solidão parece ser encarada como uma derrota avassaladora no jogo social. Parece nunca ocorrer a ninguém que a aversão à solidão pode também ser sintoma da incapacidade de cada um de nós se confrontar consigo próprio. Com os nossos talentos e as nossas lacunas. É que por mais legítimo (e seguramente reconfortante) que seja a expectativa de podermos contar com a nossa rede de afectos, haverá sempre circunstâncias em que seremos confrontados com a responsabilidade de decidir acerca das mais íntimas das nossas convicções. Nessa altura, retiramo-nos do mundo, da mundanidade. Como num sufrágio, como se estivéssemos numa cabina de voto, decidimos o nosso rumo. A analogia não é assim tão absurda. Fala-se da solidão do poder, por que razão não se poderá falar da solidão de viver?
Há quem ponha na mesma equação a solidão e o silêncio. Quem, ao chegar a casa, ligue a televisão ou o rádio para embalar o quotidiano com a companhia dos sons, das vozes. Como se preenchesse espaços em branco, como se esconjurasse a vacuidade. Os modos de vida modernos oferecem-nos doses infinitas de ruído orquestrado de forma a parecer melodia. O som ambiente é de tal modo omnipresente (nos elevadores, nas esplanadas, nos edifícios em geral) que já nos esquecemos do legítimo som do meio ambiente. E quantas vezes tagarelamos na ilusão de estarmos a dialogar? Seria mais sensato meditar na sabedoria clássica de Eurípedes: “Fala se tens palavras mais fortes do que o silêncio, ou então guarda silêncio”.
Imagem: "Alone in her Thoughts" de Ryan S. Brown (courtesy of Bert Christensen)