O PAPA DOS DESCRENTES
Março 26, 2014
J.J. Faria Santos
Há aqueles que acham que qualquer cedência, qualquer relaxe na ortodoxia, qualquer nuance na aplicação da doutrina, é uma séria ameaça de descaracterização e um potencial cavalo de Tróia a galopar infrene no coração do catolicismo, para o condenar à irrelevância e à decadência. Para uma instituição com séculos de existência, acham eles, o conservadorismo é condição indispensável para a manutenção da sua influência e poder numa sociedade relativista e amoral. Daí os imperativos categóricos que não admitem a dissidência. Para eles, o Papa Francisco constitui um desafio: a sua condição da Sumo Pontífice desperta-lhes a obediência acrítica, mas a maneira como ele exerce o pontificado desgosta-os.
E o que é que o Papa Francisco trouxe de novo? Simplesmente, deslocou o ponto nevrálgico da discussão religiosa da proclamação da intransigência doutrinária para a necessidade de proteger os destituídos, e acolher sem vetos ou julgamentos sumários os que procuram o abrigo da fé. Como escreveu James Carroll num ensaio para a New Yorker ( “Who Am I to Judge – A radical Pope’s first year”), “a alteração de uma autoridade baseada em imperativos não negociáveis para uma liderança assente no convite e no acolhimento é tão fundamental para o significado da fé como qualquer dogma”. Carroll diz que é evidente que “o Papa Francisco não é um liberal”, mas que se tornará num “radical” se conseguir alterar a forma como o poder é exercido no seio da Igreja.
E como é que se justifica a simpatia dos não crentes e dos agnósticos? Pela simplicidade da indumentária, pela modéstia dos aposentos que habita e da viatura que o transporta, pela linguagem comum e pela mensagem de preocupação com os necessitados e com os proscritos? Talvez a resposta mais apropriada resida na evidência dos não crentes terem encontrado nele um interlocutor aberto e tolerante, ainda para mais dando-se o caso de, como notou Adam Gopnik (“Bigger than Phil – When did faith start to fade?” – The New Yorker online), “os racionalistas puros” serem “raros” e os que não foram tocados pela fé “procurarem a transcendência e a epifania, praticarem algum ritual, viverem algum rito”.
Gopnik diz que “sociedades prósperas e relativamente pacíficas”tendem a apresentar um declínio na “crença numa divindade”. Já o Papa Francisco diz-se possuidor de uma convicção inabalável: “Tenho uma certeza dogmática: Deus está presente na vida de cada pessoa”. Quem sabe? Talvez cumpra o seu desígnio de Deus misericordioso e ampare e guie mesmo aqueles que nele não crêem.