O NOVO HOMEM DO LEME
Março 19, 2023
J.J. Faria Santos
“Aqui ao leme sou mais do que eu: / Sou um povo que quer o mar que é teu”, dirá Gouveia e Melo ao “mostrengo”, que nada mais poderá ser que o fantasma de letargia, fraqueza e desorganização que nos tolhe enquanto nação. Depois de ter comandado a inoculação contra a covid-19, eis que se vê confrontado com o vírus da indisciplina no seu core business, frisando que “a disciplina não é, nem nunca será, um mero acto de submissão, mas sim de um verdadeiro autocontrolo e entrega”.
Se atentarmos na fita do tempo dos acontecimentos, verificámos que tivemos direito a uma alusão cinematográfica (Revolta na Bounty) e à flagelação pública dos insubordinados (com nova referência hollywoodesca: a Marinha não envia “navios e guarnições para missões impossíveis”), acabando o almirante por derivar para umas insólitas considerações de teor político.
É tendo em conta este último aspecto que não podemos deixar de concluir que Gouveia e Melo parece ter perdido a noção da “disciplina como autocontrolo”. «Parece-me que muitas motivações para o circo que se instalou à volta deste caso, apesar da sua gravidade, não têm unicamente a ver com este facto mas são por causa da popularidade que me tem sido atribuída», disse o Chefe da Armada ao Nascer do Sol, numa tirada a leste das suas funções e indiciadora de que os seus interesses privados possam colidir com o exercício de um cargo na Marinha em que convém que a firmeza e a competência andem de braço dado com a discrição, e a ambição pessoal seja subalternizada ao bem comum.
Num artigo particularmente cáustico, intitulado “Ambição sem princípios”, Pacheco Pereira escreveu no Público que se “o almirante vai continuar a usar o cargo para promover ou defender a sua candidatura presidencial, devia abandonar as funções ou ser demitido por alguém”. Bem vistas as coisas, a narrativa de que o PCP terá estado por detrás do movimento dos 13 militares vem alimentar uma conjuntura política em que o adjectivo comunista tem sido arremessado com assinalável leviandade, e pode ser mais uma medalha no peito do putativo candidato outsider da direita.
Ao Nascer do Sol, o major-general Carlos Chaves declarou que o almirante é visto por muitos na classe política como “um homem a abater”, afiançando que ele “mete medo a muita gente”, sobretudo políticos que “vêm de carreiras partidárias, familiares, mafiosas, e que sabem que com ele num lugar de responsabilidade há muita coisa que acabaria”. Eis, em todo o seu “tenebroso esplendor”, o retrato do impoluto homem providencial pronto para limpar o país da corja nepotista e incompetente. Rodeado por esta aura populista e militarista, que sabemos do pensamento e das ideias políticas deste novo almirante sem medo? Sim, porque um Presidente é um actor político, não é um candidato a salvador da pátria com uma auto-estima exacerbada e um sentido agudo de disciplina. Não lhe basta murmurar uns versos de Pessoa: “Meu pensamento é um rio subterrâneo / Para que terras vai e donde vem?”
Imagem: www.defesa.gov.pt