O NATAL DA TUA AUSÊNCIA II - FRED
Dezembro 20, 2020
J.J. Faria Santos
É véspera de Natal. Já passou quase um ano e meio desde que partiste e continuo a saltar para o teu lado da cama conjugal que partilhavas com o Pedro. E a olhar para ele. Primeiro para o vulto enrolado nas mantas e depois para o rosto onde se misturam o espanto e a compreensão intuitiva. Os cínicos, os mal-intencionados ou os descrentes da bondade animal podem achar que o meu percurso matinal em direcção ao vosso quarto é apenas a manifestação de um hábito (é verdade que nós, os gatos, apreciamos a constância e as rotinas), mas seria estulto ignorar a possibilidade do sentimento de perda transcender a condição humana. E a verdade é que sinto a tua falta, da tua mão a percorrer o meu dorso, dos teus dedos enredados nas minhas orelhas, da tua voz pairando suave no reino da paz doméstica. Que importa que não me lembre dos traços do teu rosto? (Parece que os investigadores estão divididos no diagnóstico desta falha felina: há quem ache que nós somos incapazes de distinguir os rostos humanos e há quem ache que este é um detalhe que simplesmente nos deixa indiferentes.) Qual é o problema? Não proclamam vocês que “quem vê caras não vê corações”? Pois, nós vemos corações. E aspiramos o aroma da vossa essência humana, o cheiro da vossa identidade única e irrepetível. Nas primeiras semanas após o teu desaparecimento, sempre que me era possível, eu intrometia-me em armários e até gavetas onde repousavam as tuas roupas, as quais preservavam o teu cheiro, mesmo que mesclado com o dos detergentes e amaciadores. Agora, na impossibilidade de o reencontrar, contento-me com um sucedâneo. É por isso que interrompo a minha higiene pessoal quando o Pedro vai tratar da dele e o persigo. Porque sei que na intimidade da casa de banho, empunhando o teu perfume, ele vai evocar-te, permitir que revivas, sob a forma de um esparso aguaceiro perfumado. E quando ele pega em mim e me incita a ir ter com o Tiago, vou de boa vontade, porque graças ao mais apurado dos meus sentidos levo-te comigo.
Mentir-te-ia se te dissesse que o confinamento me transtorna grandemente. Há alguma coisa mais deliciosa que passar longas horas a dormir, ou intermináveis minutos a fixar um ponto obscuro numa parede ou a examinar o comportamento de um pássaro irrequieto? Não sou um gourmet, nem tenho gostos requintados, e o sexo parece-me claramente sobrevalorizado. Pelo menos do que me lembro… antes de ser castrado, o que, ainda assim, me provoca sentimentos ambivalentes. Os ardores da paixão deixavam-me inquieto, insuportavelmente dependente da lei do desejo, mas, por outro lado, havia algo de boémio e sofisticado na vadiagem alimentada pela luxúria. Mesmo que tudo acabasse num beco esconso com uma gata sem pedigree. Não será exagerado da minha parte dizer que foi cometido um crime contra a minha autodeterminação sexual, mas tudo isto faz parte do passado, e de um passado anterior ao nosso encontro. E mesmo que esse crime pudesse ser reconhecido, certamente já deve ter prescrito. Não sou dado a lutas quixotescas, submeto-me à realidade mesquinha e subverto-a sempre que posso. E nos intervalos durmo. E sonho. E muitas vezes sonho que estou a dormir. E quando acordo, salto para a secretária do Tiago, e posto-me tipo torre de pêlo ao lado do portátil. A caminho dos 14 anos, o Tiago começa a interessar-se por alguns conteúdos que não deseja publicitar no seio familiar, e não serei eu que irei cometer inconfidências. Na verdade, de cada vez que me junto a ele, insiste em impingir-me a visualização de vídeos no YouTube protagonizados por gatos supostamente virtuosos ao piano ou do Instagram da Choupette, a gata “viúva” do Karl Lagerfeld. Ora aqui está um homem que, se fosse vivo, teria motivação, interesse e talento para criar uma máscara protectora para os felinos que se adaptasse aos nossos imprescindíveis bigodes…
Na verdade, não é recomendada a colocação de máscaras em animais domésticos. Podem até ser prejudiciais. Lamentavelmente, tudo indica que os gatos sejam mais susceptíveis à doença do que os cães. Se eu for infectado, corro o risco de apresentar sintomas de problemas respiratórios e gastrointestinais. Temos de tomar precauções semelhantes às que são recomendadas aos humanos: permanecer em casa, e quando fora de casa manter a distância social, evitar aglomerações e a interacção com outras pessoas que não os coabitantes. A única parte boa é que não existe registo de que algum gato tenha contaminado um ser humano. Estou livre desse receio e do espectro da culpa, mesmo involuntária. E não posso dizer que o afastamento social seja um fardo. Gosto de observar o mundo do parapeito da janela e quando me aventuro no exterior, por períodos curtos, não me afasto dos meus domínios, cercados de muros e sebes. Já tive a minha dose de becos e travessias temerárias de vias rodoviárias. Sim, eu já fui um aventureiro, sedento de novas experiências, radical na minha exposição ao mundo. Agora, prefiro o conforto e o aconchego da repetição do ciclo de vida diário. E qualquer intromissão do inesperado parece (e é) um desaforo, uma contrariedade de proporções alarmantes. Não te quero perturbar, onde quer que estejas, mas uma intrusa ameaça imiscuir-se no nosso lar. Não me parece que a culpa possa ser atribuída ao Pedro. Mesmo sabendo que os homens têm certas necessidades, emocionais e também de índole sexual. Se fossem apenas estas últimas que estivessem em jogo, eu diria que seria de ponderar a hipótese (horrenda, é certo, desumana, claro) de castrar o Pedro. Só de pensar na selvajaria disto, eriça-me o pêlo todo. Para já não falar do lamentável assassinato da minha coerência. Eu também tive a minha dose de gatas fatais, miando maviosamente e abanando a cauda sedutoramente. E sucumbi várias vezes. Mas paguei o preço do desencanto e do desalento que as paixões inconsequentes geram. Eu sei que tu quererás que o Pedro persiga a felicidade, sem ficar preso na dor do irrecuperável, mas esta mulher, acredita, é uma sonsa insossa que não o merece.
Eu sei que estamos na quadra da boa vontade e da comunhão dos espíritos, mas mesmo na época dos licores deixa-me servir o veneno. A candidata ao teu lugar já invadiu a casa. Em plena pandemia, diga-se, embora com a atenuante de ter feito o teste na véspera e o resultado ter sido “não detectado”. Chama-se Maria Ana. Não é Mariana, que é demasiado banal… é Maria Ana. Dá para acreditar? Aposto que se tiver irmãos se chamam Bernardo Maria, Pedro Maria, António Maria e assim sucessivamente. As classes afluentes têm uma fervorosa devoção mariana (ou será devoção maria ana?) Que tal te parece o meu sentido de humor? Cáustico? Que é que eu vou fazer? Sou felpudo, fofo, adorável, mas canso-me de ser bonzinho. Em vez de afiar as unhas, afio a língua? Perdoas-me? Tenho de admitir que ela se esforçou por ser agradável com toda a gente. O Tiago achou-a simpática, mas titubeante. Eu não a achei, digamos, asquerosa, mas deu um passo em falso que pesou sobre a minha consideração (e de que maneira…) Não é que a criatura, de uma forma assarapantada e inopinada, deslocou o pé direito e infligiu-me uma dor lancinante ao pisar a minha cauda? Claro que eu fiz questão de assinalar este humilhante incidente com um miado pungente, que trepou na escala dos decibéis, ao mesmo tempo que me pus em fuga com a agilidade que me caracteriza. Se eu quisesse ser verdadeiramente melodramático, no acto da fuga derrubava a árvore de Natal, mas a criatura não merecia tal tremendismo. E se achas que o pior já pensou, cogitas mal. Tentando emendar o faux pas, e preocupada com o meu desaparecimento fulminante, não obstante a terem tentado sossegar, a Maria Ana tratou de solicitar a minha presença, balbuciando uns piedosos “bichinho, bichinho”. Sabes bem como me irrita quando me tratam assim! O meu nome é Fred! Quem diria que por trás deste pretensioso Maria Ana se escondia uma saloia? Perdão! Uma saloia, não, que tem dignidade e merece respeito! Uma bimba! É o que ela é! Claro que pouco depois saí do meu recanto seguro, mantive uma distância de cerca de três metros (ela é mais perigosa que o coronavírus…) e tratei de me refastelar, permanecendo ainda assim bem alerta às manobras dela. Assoberbada pelo remorso, a criatura descaiu-se, comentando que eu a estava a fixar demoradamente. Que devia estar receoso ou traumatizado, ou, em alternativa, zangado. Seria tranquilizador se alguém explicasse à Maria Ana que graças à membrana nictitante eu não preciso de pestanejar tão frequentemente para evitar os olhos secos. E é isto que explico o magnetismo do olhar felino, que há quem ache enigmático e quem ache sinistro. Ainda bem que ninguém o fez. Não quero que a tranquilizem; quero-a inquieta. Está bem, admito. Quando quero, sou mau. O inconveniente é que ser mau deixa-me exausto. Acho que vou dormitar. Posso não ter a cama Swing da LucyBalu como a Choupette, mas tenho melhor. Tenho duas: a minha e o teu lado da cama.
Do meu posto de observação, no parapeito da janela, assisto a dois tipos de curtas-metragens: ou ruas desertas de gente ou um soturno Carnaval em Dezembro, com gente exibindo umas máscaras que assustam a criatividade em nome da segurança. Para ser rigoroso, um ou outro exemplar da vasta galeria de humanos arrisca na inovação. São os que usam o acessório no queixo, por exemplo, ou os que deixam o nariz a descoberto. Outros ainda, portadores de máscaras sociais, inovam no tecido e nos padrões, mas a variedade não faz esquecer a ameaça subjacente. Os encontros na rua são furtivos, prudentemente distantes, por vezes deixando que a voz transporte o calor dos gestos que se evitam ou recusam. Muitos deles dedicam-se a passear os cães (quando não são selvaticamente rebocados por animais possantes com fúria de liberdade…), ao passo que outros também se dedicam a uma actividade chamada desporto. Que muitos prefiram correr desalmadamente em vez de se refastelar a dormir ou a descansar ultrapassa a minha capacidade de entendimento…A Maria Ana, a dita cuja, não aprecia o jogging, pelo que neste aspecto particular não acompanha o Pedro. Parece que é praticante de Pilates. Haja alguma coisa que a eleve aos meus olhos. Ouvi dizer que a maior parte dos exercícios de Pilates são executados com a pessoa deitada, o que me parece um franco progresso. Desporto deitado já me parece tolerável.
Que será que vou receber de presente? Uma daquelas camas com ventosas que se podem prender às janelas para melhor apanhar sol? Um snack estaladiço com recheio de salmão? Um coffret com champô e condicionador? Pelo tamanho não consigo perceber. Já fui discretamente remexer o embrulho, tentar avaliar o peso e se chocalhava. A envergadura não diz nada. Pode ser um daqueles presentes-matriosca, com uma caixa dentro de outra caixa e assim sucessivamente. Não fui assim tão discreto na empreitada, pelo que acabei admoestado e escapuli-me com o rabo entre as pernas. Não por medo, claro está, mas por vergonha, porque fui incompetente e apanhado em flagrante delito. Como um rato reles e impaciente. Enfim, é Natal e ninguém leva a mal. A casa está menos agitada, com menos pernas para contornar ou envolver (e também menos crianças excitadas que acham que a minha cauda é uma espécie de liana preparada para ser manipulada a seu bel-prazer). A Maria Ana não vem. Passa o Natal com a família dela, naturalmente. Também não faria sentido que viesse. Cá entre nós, deixa-me que te diga que acho que o Pedro vê nela apenas um placebo para o desamparo, ou um daqueles medicamentos SOS que os médicos prescrevem para as dores mais insuportáveis. Não há qualquer risco da drageia Maria Ana causar habituação e o único efeito secundário provável é o reavivar da nostalgia. Ela não é feita do material do qual as sucessoras emergem. É esta a minha opinião definitiva, embora tenha de admitir que acho que dificilmente alguém estará à tua altura. Não se trata do exagero da admiração, trata-se de uma evidência irrefutável. Tão irrefutável como o espírito de Natal. Não quero saber dos que acenam com o consumismo ou com a frivolidade dos enfeites. Não há como negar a força da corrente que liga quem percebe partilhar um destino comum ao qual é indispensável um módico de afecto e solidariedade. Eu ia evocar o humanismo, mas que sei eu do humanismo? Eu sou apenas um simples (e ao mesmo tempo esplendoroso, concedo…) felino. Já em relação ao afecto, sinto-me com legitimidade para o invocar, mesmo que o pratique com irregularidade e ao sabor dos meus caprichos. Hoje, esparramado junto a uma fonte de calor, embalado pela música das palavras, sublinhadas pela percussão dos talheres e dos copos que se tocam, aconchegado pela tribo humana reunida à volta da mesa natalícia, sinto um pouco menos a tua falta. Perdoas-me? É que aquela dor aguda, persistente e desorientadora foi substituída por uma melancolia apaziguadora. Graças aos trezentos milhões de neurónios que possuo (quase o dobro dos neurónios dos cães, essas criaturas medonhas claramente sobrevalorizadas…), e à minha intensa devoção a ti, permaneces viva na minha memória, que é por natureza selectiva e episódica, e presente nesta reprise do Natal da tua ausência.
Imagem: Rosa Bebb (freevintageart.com)