O NATAL DA TUA AUSÊNCIA (C0NTO DE NATAL)
Dezembro 23, 2019
J.J. Faria Santos
É véspera de Natal. Já passaram quase seis meses desde que partiste e o nosso adorado gato persa (que partilha comigo uma aversão ao barulho) continua a saltar para o teu lado da cama e a olhar intensamente para mim. Não consigo perceber se se está a apropriar do teu lugar ou se está a marcar a tua ausência com a sua pose régia. Ocasionalmente, solta um miado. Demasiado enérgico para ser um lamento; demasiado suave para ser um incentivo. Escusado será dizer que me sinto entorpecido, sem vontade de me erguer do leito. Não é cansaço. Chamar-lhe-ia indolência, não fosse a pontada de desespero que traiçoeiramente se insinua na fímbria dos dias. Por isso, deixo-me ficar um pouco mais, de olhos fechados agarrado à almofada, com o corpo esparramado na diagonal, reclamando para mim parte do espaço que era (é) teu e que o Fred (como o Astaire, porque o nosso felino quando caminha parece bailar, com elegância e souplesse) não consegue abarcar. Sei que isto não pode continuar assim, mas continuo a desafiar as probabilidades, a esticar os limites do meu transtorno emocional que não me deixa, apesar de tudo, incapaz para as tarefas do dia-a-dia. Permaneço funcional, operativo, gregário quanto baste. As pessoas dizem-me que estou com bom aspecto e, nesta quadra, até se atrevem a desejar-me as boas-festas, mas não um feliz Natal (se a felicidade parece obscena perante a dimensão da tua ausência, já a bondade é admissível). E se o fazem com generosidade, acredito, não conseguem disfarçar a incredulidade que se inscreve nos seus rostos. Porque há um limite para o fingimento, para a credibilidade de uma proclamação que os lábios sopram, que a cabeça descrê e que os olhos desmentem. Sim, estou bem, replico, usando uma resposta socialmente aceitável, sensata. E, apesar de tudo, o caldo morno e suave das regras da convivência social tornam tudo mais suportável.
O Fred esmera-se, agora, no asseio pessoal e ignora-me. Lambe metodicamente cada interstício das patas e depois, contorcionista, tenta expandir a língua pelo dorso, alisando o pêlo humedecido. E com franco despudor não se inibe de prosseguir com a higiene íntima, imperturbável, mesmo quando o colchão oscila à medida que me arrasto para fora da cama. A claridade filtrada pelo cortinado dá um tom sépia à assoalhada, vagamente irreal, fora do tempo. Dirijo-me para o quarto de banho, bocejando. Abro o armário para retirar o gel de duche por encetar, cuidadosamente encostado à direita do compartimento. Do lado esquerdo, de uma forma cativantemente desordenada, estão os teus produtos de beleza. (Lembro-me de pensar, nos primeiros tempos de coabitação, aqueles em que aprendemos a amar as idiossincrasias do outro, mesmo as que nos poderiam irritar, sobretudo as que nos poderiam irritar, lembro-me, dizia eu, de pensar: mas para que precisa ela de produtos de beleza?) Aposto que estás a atribuir ao encantamento do enamoramento esta minha espécie de espanto, mas a verdade é que os cosméticos poderiam apenas iluminar-te (como um holofote junto a uma obra de arte). A essência da beleza é outra coisa, subjectiva, certamente, mas intrínseca a cada ser, que irradia dele e se projecta nos outros. Apesar disto, não me atrevi a esvaziar o teu lado do armário. Quando me apetece sentir a tua presença, recorro a um estratagema insatisfatório: pego no teu perfume e ponho-me a aspergir o ar, inalando-o como se ele me estivesse a banhar, como se partículas de ti me abençoassem. Funciona como um remedeio, um placebo. Ou um paliativo, esse consolo dos malditos, esse edital dos condenados. Perco-me em devaneios, dos quais só o Fred me arranca, enrolando-se nos meus tornozelos, contornando-os como se estivesse numa pista de obstáculos. Pego nele, fofo, macio, quente, vivo e retiro-o do quarto de banho, sugerindo que vá ter com o Tiago. A água do duche derrama-se sobre mim, higiénica e terapêutica.
Este ano foi o Tiago que seguiu a tradição e cumpriu o ritual. Subiu ao sótão no início do mês de Dezembro, retirou de lá a árvore artificial e os enfeites, e tratou de erigir na sala o tradicional monumento ao Natal. Interpretou o teu papel, ou melhor, recriou-o. E como um diligente e bem preparado actor foi mais superlativo que supletivo. Dou graças pelo facto de ele já ter doze anos, quase treze. Consegues imaginar o pesadelo que seria para mim explicar a um rapaz de três ou quatro anos que a mãe partira, adormecida, numa espécie de nave espacial de madeira, em viagem para as entranhas da Terra ou para os confins do Universo? Uma viagem sem regresso? É espantoso como ele conseguiu lidar com a tua partida de uma forma tão serena. Aposto que para isso contribuíram as conversas sussurradas com a tua mãe e com a minha. Há uma sabedoria ancestral que se manifesta nestas ocasiões e que as avós transportam como um testemunho a ser transmitido aos vindouros. E acredito que as duas olham para mim com a indulgência e uma certa ternura com que a generalidade das mulheres parece olhar para a generalidade dos homens: um grupo de crianças grandes, capazes de gestos de valentia e generosidade, mas emocionalmente incapazes de lidar sozinhos com as grandes contrariedades e os inescapáveis dramas do quotidiano.
Não fui eu capaz de me manter impassível, de rosto absolutamente ilegível, quando o teu médico anunciou com suavidade e tacto, mas com voz firme, que o pesadelo regressara, com ramificações no estômago e no fígado? Terás sentido um leve aumento da pressão da minha mão no teu braço, mas ter-te-á passado despercebida a aceleração das minhas batidas cardíacas. E seguramente não notaste o breve momento de desorientação que coincidiu com a meteórica névoa que me toldou a vista. Depois, recompus-me e perguntei àquele que parecia ser o dono do roteiro do teu futuro qual era o prognóstico. A resposta não nos surpreendeu, mas nem por isso foi menos devastadora: as circunstâncias tinham-se agravado, a resposta aos tratamentos poderia não ser eficaz, o mal alastrava-se, persistente e indomável. Quando falaste, sem deixar transparecer qualquer inquietação ou ansiedade, perguntaste apenas pelo tempo que tinhas para gastar. Menos de seis meses, se os tratamentos não fossem sequer eficazes no retardamento do desfecho. Porque a possibilidade de cura era do domínio dos milagres. Saímos do gabinete em silêncio. E, depois, disseste que querias ir ver o mar. Ficámos a olhar para o desassossego das marés, de mãos dadas.
Passados quase seis meses, aqui me tens a olhar para ti, para um instantâneo de ti aposto sobre uma lápide. Escolhi uma hora antes do meu jogging, uma altura da tarde em que o cemitério costuma estar despojado dos vivos, antes da missa da tarde e pouco depois da hora do almoço, período em que a generalidade das pessoas vai em procissão tomar a dose de cafeína. Sinto que ainda tenho muito para te dizer, mas persiste uma incapacidade de expressão aflitiva. Como se as palavras se acumulassem num túnel cada vez mais estreito e o bloqueio criasse um movimento de regressão. Exactamente como nas últimas horas da tua presença, em que deitada numa cama de hospital, impossivelmente luminosa para quem se aproximava da escuridão, desfiaste metodicamente uma lista de conselhos, sugestões e providências (“o meu colar étnico é para a tua irmã”. “tens de levar o Tiago a Londres”, “não sejas demasiado permissivo com o Fred”), enquanto eu me limitava a pegar nas tuas mãos, como se isso impedisse que escapasses por entre os meus dedos. Quiseste falar com o Tiago a sós. Nunca lhe perguntei o que lhe disseste e ele nada adiantou. Quando ele reabriu a porta, convidando-me a regressar, achei-o sereno, pacificado mais que conformado, sem sinal de revolta perante uma patente injustiça. Não me admiraria se lhe tivesses pedido que tomasse conta de mim. Passados quase seis meses, aqui me tens combalido, mas resistente. O Sol de Outono, tépido e indeciso, banha o jazigo onde me estendo, o meu corpo sobre o teu corpo encarcerado pelo granito, por madeira e por sete palmos de terra. Sentes a reverberação contínua do meu coração a bater por ti, imune ao frio tirânico que pune as minhas articulações e músculos, e para o qual o calor solar constitui fraco consolo? Cheiras a rosas brancas. Nos últimos tempos, andas muito volátil em termos de aromas. Já assisti à ascensão e queda dos crisântemos e dos lírios. Que triunfem, pois, as rosas brancas, que parecem engalanadas com purpurinas, tão apropriadas, também, para a passagem de ano.
As nossas mães conspiraram para me manter fora de casa durante grande parte da tarde. Quiseram fazer os preparativos da ceia de Natal, sem estorvos, coadjuvadas apenas pela minha irmã. Devem ter achado que o leve espírito de celebração me transtornaria. (Meu Deus, desde quando as pessoas me terão encarado como uma flor de estufa?) A culpa deve ser minha. O meu rosto permaneceu fechado e até inamistoso durante um largo período de tempo em que as pessoas me repetiam que a vida tinha de continuar. E recentemente, a minha cara sogra (a tua dedicada mãe!) fez questão de me dizer, com suavidade e inequívoca sinceridade, que um dia eu encontraria alguém que me faria feliz, e que não via isso como um desrespeito a ti. Porque insistirão as pessoas em verem a persistência da tua presença na minha memória como algo potencialmente pernicioso? Não é como se eu estivesse trancado dentro de casa, mergulhado numa depressão, paralisante e potencialmente suicida. O luto precisa de tempo e espaço, não pode ser ultrapassado por receitas estereotipadas de gurus de auto-ajuda ou por mensagens positivas postadas no Facebook. O sofrimento não pode ser relegado para a porta dos fundos da alma, enquanto escancaramos o hall de entrada a um qualquer esfusiante recomeço.
Chego a casa já a coberto do anoitecer, transpirado, mas revigorado pelas passadas aceleradas pelas ruas da cidade. A primeira coisa que noto é o aroma a canela, uma das minhas predilecções que só perde em confronto com o café. (Lembras-te de quando fazias o teu bolo gelado e era a mim que competia mergulhar as bolachas em café antes de as dispor na forma amovível? Mesmo depois de lavar as mãos, o aroma do café persistia e eu, deliciado, passava horas a cheirar os meus dedos.) Há travessas de aletria, rabanadas, leite-creme e farófias numa mesa. E recipientes com frutos secos e uma infinita variedade de bombons. A casa parece albergar uma multidão, e o burburinho de conversas transviadas encontra-se com o tilintar de copos e o gotejar de líquidos. A minha irmã aproxima-se e beija-me, sussurrando feliz Natal para não acordar o desgosto, o que espoleta uma sequência de cumprimentos que me deixam constrangido e com necessidade de alertar para o facto de estar a necessitar de um banho. A tua mãe, com o cabelo impecavelmente penteado e um avental imaculado, despeja farinha para dentro de uma forma enorme, e a minha, com aquele jeito que combina o voluntarismo com alguma precipitação, apressa-se a pegar na bacia com a massa, enquanto o forno, pré-aquecido, resfolega. As crianças cirandam pela casa, ornamentadas com hastes de rena, imiscuindo-se entre as pessoas e as conversas. Há uma selecção de músicas da época a servir de banda sonora. Apercebo-me de que o Fred, avesso à agitação infantil, permanece estrategicamente erecto junto à árvore de Natal. Ocasionalmente, flecte uma orelha quando inadvertidamente toca num enfeite. Noutras alturas, aproveitando a distracção geral, diverte-se a impulsionar repetidamente uma bola dourada com a sua pata direita. É então que me apercebo que a árvore sofreu recentemente uma espécie de upgrade e que o Tiago, o seu arquitecto, retomou uma das tradições que tu no ano passado decidiras interromper, porque te parecia, então, algo soturna. Sim, adivinhaste, o Tiago decidiu acrescentar à árvore uma série de bolas onde colou as fotografias das pessoas da família que já não estão entre nós. Estão lá a tua tia Ana (que tinha um sentido de humor cortante e uma generosidade infinita) e o meu avô Mário (com o ar distinto que as pessoas, por vezes, confundiam com vaidade). E estás tu. Que fazes no meio deles quando ainda te sinto no meio de nós? Então, de súbito, enquanto me enredo nas minhas interrogações e no meu aturdimento, e racionalizo um cenário de comunhão espiritual que triunfa sobre a degradação do corpo e o perecimento, compreendo, absorvendo a algazarra festiva, o caleidoscópio natalício e os aromas calorosos que revivificam a memória, que estás presente no Natal da tua ausência.
Imagem: "Christmas Aura" de Leonid Afremov (www.deviantart.com)