O EPIDEMIOLOGISTA HONORIS CAUSA PELA UNIVERSIDADE TVI
Fevereiro 07, 2021
J.J. Faria Santos
Inicialmente, a rubrica Global parecia destinada aos grandes temas da política internacional. Paulo Portas prescindia de mergulhar na mesquinhez das tricas internas, mantendo-se convenientemente afastado das convulsões da sua família política, ao mesmo tempo que compunha uma aura suprapartidária com verniz presidencial. As subtilezas da diplomacia e a riqueza da geoestratégia alimentavam o seu lendário sentido de Estado e a sua irrevogável pose hirta e solene. Mas eis que desabou sobre o mundo uma pandemia e o global pareceu demasiado amplo para os seus cirúrgicos objectivos a nível nacional. Foi quando Portas se transformou numa espécie de explicador do fenómeno pandémico luso, armado de dados, quadros, gráficos, curvas e opiniões definitivas sublinhadas por uma cara fechada, um dedinho em riste e o ocasional sorriso no canto dos lábios quando dá uma ferroada no desempenho governamental. O analista de política internacional evoluiu para uma espécie de epidemiologista honoris causa pela Universidade TVI.
Como sublinhou Constança Cunha e Sá (que conhece bem quer a TVI quer Portas, e é insuspeita de deriva esquerdista) no Twitter: “Quando é que a TVI percebe que o Paulo Portas não é médico, nem infecciologista e não tem preparação para ter um comentário semanal sobre vírus e vacinas. Uma coisa é todos nós termos umas coisinhas a dizer sobre a coisa, outra é esta fantochada semanal.” Na passada semana, o ilustre comentador fez num aparte “uma reflexão melancólica de quem saiu da política há 5 anos”. Imaginem que nas actuais circunstâncias, propôs ele, Portugal vivia sob “a égide de um Governo de centro-direita”. O que não se diria, as demissões que não se teriam pedido, os insultos que não se teriam proferido. E terminou, em jeito de desabafo, afirmando que “as pessoas também têm que ganhar um bocadinho de equidade nestas coisas.” O cerne da questão está precisamente na questão da “equidade”. Portas pode proclamar que saiu da política (o que me parece altamente duvidoso), mas a verdade é que a política jamais “sairá” dele. É uma segunda pele, um reflexo condicionado. Mesmo enquanto director de jornal, a sua objectividade foi sacrificada a uma agenda política.
O exercício de análise crítica da actividade governativa é não só altamente recomendável como essencial para a saúde da democracia. Mas também me parece indispensável que não se pretenda transformar uma rubrica de opinião num oráculo ideologicamente puro, aludindo a uma duvidosa abstinência de cinco anos. Sobretudo vindo de quem é apontado como futuro candidato presidencial. Vamos ter um remake para o centro-direita (protagonizado por um cinéfilo), com Portas a caprichar nos afectos? De resto, ele não deve ter razões de queixa em relação ao que se tem dito sobre o actual Governo. Pedidos de demissões? Check. Insultos? Check. E ainda, como bónus, líderes de opinião à beira de um ataque de nervos, clamando por governos de iniciativa presidencial e passando certidões de óbito ao Governo de Costa. Não há falta de massa crítica, os opinion makers estão atentos e de língua afiada. O epidemiologista honoris causa pode dedicar-se à nobre arte da política. Sem dissimulação.
Imagem: Tviplayer.iol.pt