O ENGENHEIRO DO CAOS DA VERDADE
Outubro 05, 2025
J.J. Faria Santos

O artigo do jornalista Marco Alves, intitulado “Como Carlos Moedas se apropriou da obra dos outros”, veio colocar definitivamente o autarca lisboeta na condição de vice-líder da tabela dos competidores pelo troféu de campeão dos “factos alternativos”. O líder, com bastante folga, é, obviamente, André Ventura. Se neste contexto os objectivos são semelhantes (obscurecer os factos e substituí-los por outros, visando o engrandecimento pessoal e obter dividendos políticos), os estilos são substancialmente diferentes. Sendo comum aos dois uma megalomania alimentada pela sensação de predestinação e uma relação intermitente com a verdade, o facto é que enquanto Ventura escolhe uma retórica torrencial formulada num tom tonitruante, desafiador e definitivo, Moedas recorre a um tom funesto, como se carregasse o peso do mundo e essa carga lhe tivesse sido consignada por uma oposição empenhada em negar o inquestionável fruto do seu labor.
Não se trata aqui de valorizar em excesso o habitual recurso que o discurso político faz a proclamações ambíguas, ou com formulações que prescindem da clareza e do rigor inatacável, para que seja possível o recuo ou a alegação de erro de interpretação. A recorrência e o acumular de episódios, que remontam pelo menos a 2021 (altura em que o então candidato Moedas anunciou, falsamente, a um país estupefacto que em 2019 tinham morrido, em Lisboa, “26 pessoas nas ciclovias”), correspondem a um padrão de desrespeito pela verdade ou de ligeireza de considerações que explicitam um compromisso fundamental com a propaganda. Ainda recentemente, na sequência do acidente no elevador da Glória, o edil lisboeta afirmou, erradamente, que Jorge Coelho se demitira na altura da queda de Entre-os-Rios por ter conhecimento da fragilidade da ponte, o que causou vivo repúdio em diversos quadrantes ideológicos e levou o jornalista Eduardo Dâmaso, no Correio da Manhã, insuspeito de simpatias socialistas, a escrever que Moedas “mentiu com os dentes todos”, classificando as declarações deste como “uma obscena ofensa à memória de pessoa falecida” e a prova de “uma completa ausência de carácter”.
Em Setembro do ano passado, em plena Assembleia Municipal, a deputada do BE Maria Escaja acusou Carlos Moedas de mentir ao responsabilizar o anterior executivo pela instalação de painéis publicitários de grande dimensão na cidade quando, objectivamente, o contrato com a empresa JCDecaux tinha sido assinado no mandato dele. Ofendido, o presidente da câmara abandonou a sala, depois de ter dito: “Chamou-me mentiroso e vou-me retirar da sala enquanto estiver o BE a falar.” Moedas não se vai “retirar” da campanha e a probabilidade de as falsidades e as incorreções no seu comportamento e discurso influenciarem as escolhas dos eleitores é baixa. Estamos na era da pós-verdade em que a crença e a emoção prevalecem sobre a realidade objectiva. E como escreveu Michiko Kakutani em A Morte da Verdade (Editorial Presença): “sem factos aceites de comum acordo (.), não pode existir um debate sobre políticas, nem um meio eficaz de avaliar candidatos para o desempenho de cargos políticos, nem uma forma de responsabilizar os representantes eleitos perante o povo. Sem a verdade, a democracia claudica.”