O DESGASTE HABITA EM SÃO BENTO E A INSTABILIDADE MORA EM BELÉM
Outubro 03, 2021
J.J. Faria Santos
Há um limite para a estratégia de minimização dos conflitos e desvalorização dos erros e omissões. E ele torna-se óbvio quando um ministro (um candidato a futuro challenger dotado de verve e determinação) se atira à jugular do seu colega das Finanças. A inequívoca vitória do PS nas autárquicas (“… quando olhamos para os resultados globais no país, verificamos que se é verdade que o PS confirma não estar em condições de atingir uma maioria absoluta em eleições legislativas, também é manifesto que o PSD continua a larga distância desse mesmo PS, em autarquias, mas sobretudo em votos” – Paula Teixeira da Cruz, in Público, edição de 29/09/21) não pode iludir o desgaste de seis anos de governação, reflectido na perda de parte do voto urbano, embora seja manifestamente exagerado o anúncio da inversão do ciclo político (“Não houve nenhuma alteração qualitativa, nenhum ‘novo ciclo’” – Pacheco Pereira in Público, edição de 2/10/21), dado que nada nos permite concluir que essa perda não possa ser estancada ou invertida. A menos que a direita em recomposição consiga apresentar uma alternativa consistente e credível, o grande desafio do primeiro-ministro vai residir na dinamização do PRR em conjugação com a manutenção do controlo das finanças públicas. Uma economia altamente endividada permanece necessariamente condicionada pelos humores dos decisores europeus, pelas oscilações da conjuntura e pela flutuação das taxas de juro, mesmo quando a confiança e o PIB crescem e o desemprego diminui. Neste contexto, a autoridade de um ministro das Finanças tem de ser preservada, o que não conflitua com o facto de este dever ter sensibilidade política para dosear a ortodoxia.
“Crises políticas nos próximos dois anos não fazem sentido”, disse o Presidente da República. O mesmo Presidente que em encontro recente com empresários os encorajou a ir “à luta” em prol de alternativas “políticas e eleitorais”. (Já não basta a concertação social e a acção de lobby? O que é certo é que o presidente da CIP entrou no campeonato das frases bombásticas, do género “O barco está a ir ao fundo e a banda continua a tocar” e “Não estamos aqui para pedir subsídios. O Estado que nos saia da frente”, esta última francamente temerária, tendo em conta o perfil e as motivações dos empreendedores nacionais.) O mesmo Presidente que, citando São José Almeida, “age, em público ou através de informações que são dadas do Palácio de Belém a jornalistas, de forma a desgastar a imagem do primeiro-ministro”.
A “agência noticiosa” Marcelo Rebelo de Sousa (para usar a terminologia jocosa usada recentemente por Barata-Feyo para se referir a Marques Mendes) esteve, mais uma vez, na berlinda esta semana a propósito da substituição do Chefe do Estado-Maior da Armada. O que começou por parecer um exorbitar de poderes e uma falta de tacto governamentais, acabou por se revelar uma intrigalhada, onde convivem alegremente notícias de uma exoneração que nunca existiu, um parecer sobre a dita exoneração discutida e votada pelo próprio militar em risco de ser demitido (parece que a ética militar passa por cima dos conflitos de interesse…) e a suspeita de que Marcelo terá sido mal informado e “manipulado” pelo seu chefe da Casa Militar, aliás, um dos potenciais candidatos ao cargo em caso de vagatura. A tudo isto, o sempre prolixo Presidente, depois de uma tríade inicial de explicações, respondeu com uma lacónica nota com alusões a “equívocos”.
Num artigo editado no Público de 23/05/2020, Pacheco Pereira previu que o segundo mandato do Presidente iria ser “muito diferente do primeiro”, que “o teatro da afectividade (…) não é tão genuíno como se diz” e que “Marcelo é muito mais autoritário do que se pensa”, fazendo notar que ele “fez toda a carreira de cínico lúdico, inócuo e pouco importante nas ‘gentes’ dos jornais e nos comentários”. De facto, é difícil não ver sinais deste perfil em gestos como o de telefonar às 3h30 da manhã para dar os parabéns a Carlos Moedas pela vitória, ao mesmo tempo que faz constar que este feito muda a dinâmica do PSD, estragando as conjecturas do mestre dos factos políticos que já via a passadeira vermelha estendida para Paulo Rangel. Portanto, enquanto defende a estabilidade governativa e uma oposição forte, o Chefe do Estado vai, simultaneamente, desgastando o Governo e semeando a instabilidade no PSD. Deixo para os ingénuos a convicção de que tudo isto se passa em nome do interesse nacional.