O CREPÚSCULO DO SEMIDEUS
Outubro 23, 2022
J.J. Faria Santos
O que acontece quando, depois de se atingir o cume, se perspectiva no horizonte o inevitável declínio? Será inescapável que a tentação da negação, a tão humana defesa perante o sofrimento ou a incredulidade, funcione como uma cortina diante da realidade? Cristiano Ronaldo ascendeu ao topo do futebol mundial graças ao seu talento, à sua força de vontade, à disciplina e ao alto grau de profissionalismo, e fê-lo de uma forma admirável. No seu percurso (uma verdadeira história de rags to riches), acabou por construir uma persona com um ego desmesurado, com tiques cartoonescos e gestos exibicionistas, toleráveis perante o seu rol de conquistas, troféus e recordes.
A batalha pela longevidade da carreira decorre em simultâneo com a preservação da juventude: dieta rigorosa, sestas, sessões de pilates, tratamentos de crioterapia semanais. A sua imagem pública é a de um semideus, exibindo todas as características distintivas da estética masculina corrente, a que se soma um estilo de vida marcada pelo luxo e até pelo excesso, ainda que acompanhado por um espírito solidário para com a família e os amigos e o apoio de causas públicas meritórias. Como fazer a transição do esplendor dos relvados para o trono das bancadas? Se o banco de suplentes é já uma tortura e uma espécie de insulto, como gerir a cronologia do afastamento?
O episódio do telemóvel do jovem autista atirado para o chão (pelo qual pediu desculpa) e sobretudo a recusa em entrar em campo no jogo com o Tottenham são sintomas de desassossego e transtorno, e este último constitui um assomo de vedetismo e fere o seu profissionalismo. A grandeza não se mede só pelos títulos individuais ou colectivos conquistados, sendo certo que deslizes comportamentais não poderão, por si só, pôr em causa um palmarés inigualável e um historial quase irrepreensível. Faltará nesta circunstância o conselho avisado de um gestor de carreira. Para quem se empenhou de corpo e alma na gestão de uma ambição, será sempre trágico e doloroso programar a desistência.
Imagem: desporto.sapo.pt