O CANSAÇO DO NOVO NORMAL
Outubro 11, 2020
J.J. Faria Santos
Cansaço. Cansaço do novo normal que nos conduziria ao Vamos ficar todos bem (irrealista, claro, mas pronunciado com o seu quê de fé, voluntarismo e superstição). Sabíamos e sabemos que não vamos ficar todos bem, mas ao espalhar a palavra de ordem era como se remetêssemos a fatalidade para o reino dos números, uma contagem estatística que merece o nosso lamento e a nossa comiseração, ao mesmo tempo que nos providencia a ilusão de que os nossos estão a salvo. Como escreveu Albert Camus (A Peste): “O flagelo não está à medida do Homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um mau sonho que vai passar. Ele, porém, não passa, e de mau sonho em mau sonho, são os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções.”
Com os números em modo alpinista, com a implosão do achatamento da curva, irrompe em cada um de nós o epidemiologista, o especialista em saúde pública, o expert em planeamento e prevenção. O espectro de uma ameaça crescente alimenta a descrença na acção das autoridades e a impaciência pelo ritmo do progresso científico, que tarda em materializar-se sob a forma da miraculosa vacina. O que não impede os mais afoitos de se interrogarem se os malefícios e a letalidade do vírus justificam a vida em suspenso. E o cansaço. Oscilamos, pois, como um pêndulo bipolar, entre a disciplina que o receio inculca e a rebeldia que o nosso desejo de liberdade instiga. Não custa reconhecer como é difícil gerir o equilíbrio entre a acção responsável e o eventual comportamento de risco (por desejo ou necessidade), que se quer calculado.
O cansaço acabará derrotado pelo instinto de sobrevivência, pela capacidade de resistência à adversidade, simbolizada por aquilo que Camus descreveu como “uma parada de homens e mulheres novos em que pode ver-se essa paixão de viver que cresce no seio das grandes catástrofes”. É necessário que esse cansaço seja transitório e gerível, de forma a mantermos um comportamento responsável, que não ceda ao pânico, mas também não dê crédito a proclamações fantasiosas ou grotescas à la Trump, e que, sobretudo, faça justiça à lição que o escritor francês inscreveu nos derradeiros parágrafos de A Peste – “(…) o que se aprende no meio dos flagelos: que há nos homens mais coisas a admirar do que a desprezar.”
(A Peste de Albert Camus tem edição Livros do Brasil/Porto Editora e tradução de Ersílio Cardoso)
Ilustração:Cartoon de Cristina Sampaio para o jornal Público