O ALVO EM MOVIMENTO
Julho 04, 2021
J.J. Faria Santos
“Cabrita é uma personagem detestável e que gera hostilidade”, escreveu há duas semanas Clara Ferreira Alves. Será do ar enfatuado e da pouca loquacidade? O alvo em movimento preferido da oposição, e não só, viu-se agora envolvido num acidente de viação com consequências fatais. A ânsia febril de tramar o Cabrita (talvez não seja necessário tanto frenesim, talvez o homem acabe derrotado pelo acumular de erros e más avaliações) gerou um tornado de desinformação, desde a lancinante denúncia do Correio da Manhã (“os titulares da investigação nem sabem para onde a viatura foi levada “) até à pergunta do milhão de dólares de Rui Rio (“Como é possível que um carro que está ao serviço do Governo não está registado?”). Ficamos a saber que o jornal tem uma relação conflituosa com a verdade (sobretudo quando ela prejudica a notícia bombástica) e que Rio desconhecia a noção de viatura em “situação jurídica de apreendida”.
O problema, dizem os indignados, é o silêncio (do ministro) e a pouca celeridade (da investigação). E a escassa “transparência das informações”. A questão fulcral, digo eu, é que cavalgando a tragédia e aproveitando a vulnerabilidade ministerial os justiceiros de ocasião estão indisponíveis para esperar pelo apuramento dos factos. Vejamos a questão da sinalização do local: o gabinete do ministro disse que as obras não estavam sinalizadas, a Brisa e o advogado da família da vítima dizem que sim, e segundo o Expresso (sintetizando o relato de uma testemunha no local), o sinistrado “Nuno Santos, que era chefe da equipa que estava a fazer manutenção na berma da autoestrada, tinha acabado de retirar toda a sinalização do local devido ao final de turno”. Aguardemos, pois, o desenrolar dos procedimentos legais. Claro que, para os profissionais da indignação, transparência seria o ministro fazer a ronda dos canais por cabo respondendo a uma inquirição de cariz mediático, e celeridade seria um julgamento sumário em que se misturariam presunções baseadas em conclusões de senso comum (o carro ia a alta velocidade, o local era quase uma recta, etc.) com considerações sobre a insensibilidade do ministro e as suas concomitantes falhas morais. E quanto ao silêncio de Eduardo Cabrita, recentemente quebrado, não é difícil presumir que se ele se tivesse desdobrado em declarações acabaria acusado de estar a condicionar as investigações. Optando pelo recolhimento, arca com o labéu de pretender “abafar o caso”, como se tal fosse possível na era das redes sociais e do jornalismo de cariz sensacionalista.
Verbere-se, se assim se entender, a acção (ou inacção) política do ministro, a sua responsabilidade última em casos como os que envolveram a aquisição das golas antifumo, os festejos do campeonato do Sporting ou o assassinato de Ihor Homenyuk, mas recuse-se aproveitar uma tragédia para obter dividendos políticos. Há sempre espaço para quem armado de certezas inabaláveis e juízos definitivos vista a toga e leia a sentença inapelável no tribunal mediático, mas é aconselhável que nos lembremos de quem, como o narrador de A Casa Golden, de Salman Rushdie, concluiu que “no fim de contas uma toga não passava de um lençol com a mania das grandezas”.