NOTAS SOBRE A CRISE
Janeiro 08, 2023
J.J. Faria Santos
Menos de um ano depois de dois milhões e trezentos mil eleitores terem ditado a vitória com maioria absoluta do PS nas eleições legislativas, a crer nos protagonistas políticos e nas fontes luminosas que jorram para os jornais, o cenário actual é o seguinte: “um clima de dissolução ética”, um Presidente a fazer um ultimato sob a forma de um prazo de um ano para “salvar a legislatura”, um primeiro-ministro ora cansado ora indiferente, ora arrogante ora com medo do pedro-nunismo, o partido que suporta o Governo à beira da balcanização e o principal partido da oposição a convocar de urgência o Conselho Estratégico para tentar reverter o atestado de inutilidade que sucessivamente lhe têm passado.
É difícil perceber se a sucessão de casos, diferentes entre si, com implicações e gravidade distintas, como sempre tratados de forma amalgamada para potenciar o efeito de avalancha, se deveram à displicência, à inconsciência ou à soberba. Percebe-se mal que quem, como António Costa, tem fama de controlar tudo o que se passa no Governo se tenha deixado arrastar para esta sucessão de microrremodelações, a ponto de se ter colocado a extravagante hipótese da dissolução da AR.
A amplitude do descalabro é de monta, mas não necessariamente irreversível, e não pode ser julgado pela sôfrega cobertura jornalística e pelo discurso indignado e profusamente adjectivado dos comentadores. O insuspeito Pacheco Pereira, assinalando “os erros e asneiras consideráveis” do Governo, escreveu no Público (edição de 31/12/2022): “Sejamos justos, há algum exagero, e uma ecologia venenosa de crítica à governação, sem paralelo nas últimas décadas, que vem mais da nova comunicação social da direita do que dos partidos da oposição que vão a reboque (…) Os media encontraram com facilidade razões para (…) conduzirem uma campanha de alcateia, nuns casos com razão, noutros sem razão nenhuma, mas o efeito de desgaste é o mesmo.”
Não tenho António Barreto como um acérrimo cultor da ironia. E também não o tenho na conta de ingénuo. Por isso, como interpretar o seu desconcertante artigo no Público de ontem, onde lamenta que estejam “toldadas as boas relações entre Marcelo e Costa”? Reparem neste extracto: “…desde sempre Marcelo Rebelo de Sousa decidiu utilizar o seu cargo para apoiar o Governo e o Parlamento. (…) Fê-lo sem reservas mentais, nem armadilhas. A ponto de ser corrente dizer que o Presidente apoia demais o Governo, em vez de o vigiar ou compensar!” Barreto, que defende que um presidente não é eleito para “vigiar, sabotar, contrapesar ou fiscalizar”, escreveu também, lá mais para o fim do seu artigo, que Marcelo “poderia ter incomodado o Governo e o PS, para ajudar o seu antigo partido, para simpatizar com a direita (sua origem política) e para favorecer novos agentes políticos. Não o fez. Por bondade ou circunstância, por necessidade ou dever. A verdade é que não o fez.”
Portanto, um Presidente omnipresente nos media, que se dedica com afinco a comentar todos os assuntos correntes da governação, que forçou a demissão de ministros e de secretários de Estado (umas vezes com sucesso, outras não tanto), actuando sempre no limite da ingerência, “decidiu utilizar o seu cargo para apoiar o Governo”. Concluamos então, partindo das palavras de Barreto que acima destaquei, que o Presidente não terá “favorecido” o PSD porque é uma autêntica Madre Teresa de Calcutá; porque demitir um Governo com maioria absoluta menos de um ano depois de ter tomado posse, sem motivo de força maior, é um absurdo; porque, como próprio admitiu, “não é certo que surgisse uma alternativa evidente e forte”; e ainda porque ele é, de novo citando as suas cristalinas palavras, “de uma estabilidade institucional total”.