MARCELO QUIS, O CHEGA SONHA E O PSD RENASCE?
Março 17, 2024
J.J. Faria Santos
Marcelo era um homem preocupado, por causa da “maioria requentada”, da execução insuficiente do PRR e da ausência do mirífico reformismo. Está-se mesmo a ver que, agora, com o seu partido no poder (finalmente), com uma vitória “poucochinha” dependente do populista de extrema-direita, com um governo previsivelmente com vocação eleitoralista, orientado para a manutenção do escasso poder, amarrado à promessa de satisfazer todas as corporações, agora sim, é que vamos ter um executivo com ímpeto reformista.
Marcelo, o dissolvente politicamente dissoluto, sabia ao que ia. Especialista em ciclos e mini-ciclos, não hesitou em trocar uma estabilidade robusta pela possibilidade de explorar o descontentamento de camadas do eleitorado para catapultar os seus correligionários para o poder, encarando a ascensão dos extremistas como um dano colateral aceitável.
Ainda o cadáver do governo cessante não arrefeceu e já os herdeiros putativos se apressam a reclamar os despojos (como disse de forma inesperadamente eloquente o Correio da Manhã: “Cofres cheios à espera de Montenegro”). O cabeça-de-casal ainda não coligiu a declaração de bens nem procedeu à habilitação de herdeiros, mas o responsável pela certidão de óbito, com um notório apego à vida, já se prepara para dar à luz uma nova solução. Como escreveu o semanário oficioso da Presidência da República, o objectivo é “descomprimir o ambiente”.
Com um retumbante direita volver, os eleitores escolheram a mudança pouco segura e atingiram o porta-aviões do bipartidarismo, premiando a retórica vazia do populismo. Há quem, na senda da magistratura dos afectos do PR, prometa acarinhar os eleitores do partido da extrema-direita. Respeitar eleitores e eleitos é uma coisa; saudar escolhas assentes no protesto, sem propósito construtivo, e premiar protagonistas da incivilidade e de propostas desprovidas de seriedade e atentatórias da vida em democracia é outra.
Em democracia o direito a escolher é sagrado. Tal como deve ser a responsabilidade que é inerente. Se o resultado é o produto das circunstâncias e da oferta disponível, compete aos actores mais votados construir uma solução que respeite a vontade popular. E aos eleitores cabe aceitar, e depois avaliar, o resultado da vontade colectiva expressa nas urnas.
Repetidas vezes foi afirmado que os portugueses se teriam arrependido da maioria absoluta concedida aos socialistas em 2022. Não consta, até ao momento (é demasiado cedo, porventura), que haja um sentimento idêntico em relação aos 18% do Chega. Mas Portugal ainda não está transformado na loja do mestre André. A tal onde se pode comprar um pifarito, um reco-reco ou uma sanfona. Sanfona, aliás, tanto pode ser um instrumento musical de cordas como uma pessoa desprezível. Marcelo, de quem se sugeriu ter querido ser o popular que esterilizasse o populismo, escancarou as portas à extrema-direita em nome do regresso ao poder do seu partido. Deve ser a isto que se chama de sentido de Estado.