MADONNA, A SERPENTE E A ÁRVORE DO CONHECIMENTO
Dezembro 10, 2014
J.J. Faria Santos
No ensaio fotográfico que a dupla Mert Alas / Marcus Piggott fez para a Interview, tendo como protagonista Madonna, está presente todo o aparato simbólico associado à carreira da artista: a carga religiosa, entre a submissão e a transgressão (a cruz, a serpente), os apetrechos da sedução (as rendas, as transparências, os corpetes, as sugestões sadomasoquistas), a vontade de esticar os limites do visível na exposição do desejo sexual.
Alguns dos enquadramentos fotográficos parecem tributários da estética de Edward Hopper. Tal acontece, por exemplo, na foto em que Madonna está sentada num leito desfeito a calçar os sapatos, enfrentando uma fresta de luz protegida por uns óculos escuros, a sombra projectada na parede, enquanto uma televisão ligada emite um ecrã em branco e livros encavalitam-se no chão. Já a sua condição de pecadora impenitente surge representada sob a forma de uma mulher de olhos semicerrados sentada numa cadeira, encostada a uma cruz tosca adornada com insinuantes serpentes. A cena remete para o pós-pecado original, para uma Eva na plena posse do conhecimento.
Ao contrário da visão tradicional do episódio narrado no Génesis, o padre e biblista Armindo Vaz, em entrevista ao Público em 2011, defendeu não estar em causa no texto sagrado “um pecado original” ou uma “queda moral”. Por outro lado, sustentou: “A transgressão de comer o fruto da árvore do conhecimento nem sequer é vista na Bíblia como pecado”. Considerando que nada neste episódio bíblico tem conotação sexual, estando apenas em causa a aquisição do “conhecimento de tudo”, o biblista absolve Adão, Eva e a serpente enquanto vítimas de uma “punição moral”, os humanos por não poderem pecar na ausência do conhecimento, o animal por incapacidade “para cometer um acto humano moral, responsável”.
Madonna ao mesmo tempo que joga com a visão tradicional da mulher cujos actos de contrição parecem apenas breves interlúdios na incorrigível cedência ao desejo, chama a si também o papel de quem provou do fruto da árvore do conhecimento e se tornou insaciável. Daí as suas afirmações à Interview de que “sempre se sentiu atraída por pessoas criativas”, ou de como “a arte dos outros a inspira”. Não há aqui uma visão da artista encerrada no seu labirinto, antes a prevalência de uma necessidade de absorver e reprocessar influências e canalizá-las para um projecto íntimo e pessoal. Os objectos da sua admiração vão dos grafitis de Banksy à música do Chopin, passando pela arte de Basquiat ou Keith Haring, pelos movimentos em câmara lenta no filme Disponível para Amar (Wong Kar-wai) e pelas interpretações de Al Pacino em O Padrinho e Marlon Brando em O Último Tango em Paris. Considerando que “a tristeza, o desespero, o sentido de justiça” são grandes indutores do processo criativo, mostra resiliência face ao falhanço, encarando-o como “um desafio” e um “convite”.
Na entrevista conduzida pelo mágico David Blaine, amigo da cantora, pontuada pela cumplicidade e pelo sentido de humor, e ilustrada com fotografias que não se ficaram pela sugestão de nudez, não faltou uma derradeira provocação. Blaine quis saber qual é a profissão mais importante do mundo. Resposta pronta e sucinta: “A prostituição, claro.”