MADAME X
Junho 18, 2019
J.J. Faria Santos
A mulher das mil imagens, a especialista da reinvenção visual e da apropriação iconográfica, deixou-se fotografar com um buraco negro no lugar do rosto. Como se a multitude de identidades de Madame X tornasse evidente a existência de um momento primordial em que o vácuo aguardasse o preenchimento. Numa outra foto, também incluída no booklet da edição deluxe do disco, Madonna revela-se por entre uma fresta de cortinas vermelhas, perturbante e enigmática, num cenário com reverberações lynchianas. Entre o momento zero de criação da persona e a antecâmara da sua exibição ao público há todo um percurso de escolhas e graus de risco, onde se procura harmonizar a integridade artística com o apelo das massas.
Sem deixar de estar desperta para as possibilidades comerciais, Madonna parece ter optado por dar primazia à sua criatividade artística, como sempre absorvendo influências e fórmulas, que reavaliou e reconstruiu, o que resultou num melting pot de sonoridades onde cabe a pop, a house, a música latina, o kuduro, o baile funk brasileiro, o hip-hop, o dancehall, a world music, o fado ou a música clássica de Tchaikovsky. “Admiravelmente bizarro”, escreveu sobre Madame X Rob Sheffield na Rolling Stone. “Um disco que explora incansavelmente todos os ângulos da pop contemporânea”, considerou um jornalista do New Musical Express. “Madonna lançou finalmente um álbum que está completamente à altura da sua reputação como uma das cantoras pop mais disponíveis para correr riscos”, decretou Jeremy Helligar na Variety. “Excêntrico, global e lisboeta”, sintetizou Vitor Belanciano no Público.
Madame X, o disco, é também a prova de que as mensagens políticas podem conviver com a celebração hedonista e com inúmeras variações dos deleites e das agruras amorosas. O mais relevante politicamente neste conjunto de temas não é, por exemplo, a eventual alusão a Trump em Batuka (“Get that old man / Put him in jail”), que não deixa de ser, porém, uma variação irónica e mordaz do slogan dirigido a Hillary Clinton (“Lock her up”). Acresce que o presidente americano é uma preocupação porque, como Madonna confessou ao New York Times, ele parece querer “remover sistematicamente todas as nossas liberdades pessoais”. A mais significativa mensagem política, contudo, é a própria abrangência de sonoridades, a variedade de estilos, numa celebração global de abertura ao mundo que o disco contempla. Sem muros nem barreiras. Como a cantora declarou à Visão: “Falo do mundo onde as pessoas são governadas e dominadas pela ilusão da fama e da fortuna, governadas e escravizadas pelas redes sociais, governadas e dominadas por opressores, pela discriminação – esse é o mundo de que eu não faço parte.” Madame X está na linha da frente do combate às distopias do presente.