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NO VAGAR DA PENUMBRA

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JUSTIÇA POP

Outubro 05, 2016

J.J. Faria Santos

sword_fighters.jpg                                               Fonte: vintageprintable.com

 

Num já muito citado texto de apresentação do 8º Congresso dos Juízes Portugueses, que decorreu na Póvoa de Varzim no ano de 2008, afirmava-se a dado passo que “o poder judicial nas democracias descontentes do início do século XXI corre o risco de se vir a assumir-se como verdadeiro poder.” E, mais adiante, interrogava-se o autor: “Se o século XIX foi o século do poder legislativo e o século XX o do poder executivo, poderá o século XXI vir a ser o século do poder judicial?” As interrogações não ficavam por aqui. Citando, entre outros aspectos, “a crise do papel regulador do Estado” e o “fim do Estado Social”, formulava-se a hipótese de ocorrer “uma transferência de legitimidade dos poderes legislativo e executivo para o judicial”, e tirava-se a conclusão de que a “amplificação de poderes do judiciário e a sua visibilidade densifica a sua dimensão política”.

 

Num artigo de opinião destinado a defender a honra do juiz Carlos Alexandre, editado pelo jornal Público no mês passado, José Martins da Fonseca, procurador da República no TAF do Porto, cita uma sentença da 2ª Secção do 4º Juízo Correccional da Comarca da Lisboa onde se pode ler que “a isenção do julgador é um requisito que em caso algum pode ser posto em dúvida, pois é nuclear no seu desempenho profissional”. Martins da Fonseca prossegue elogiando cidadãos e magistrados que na Índia “saíram à rua em defesa dos seus magistrados”, conscientes que estavam de que “a opressão, a intolerância dos poderosos, a corrupção, a mentira, a hipocrisia, a prepotência, a violência, a cobardia e a arbitrariedade dos poderes constituídos só se combatem com os homens e mulheres livres” que asseguram a concretização da justiça nos tribunais. Terminava com a expressão de um desejo, quase em forma de repto: “Tenho esperança de ver, um dia, os cidadãos deste país, também indignados e cansados de tanta sordidez, unirem-se em defesa dos seus magistrados.”

 

Em Dezembro de 2007, num texto acerca da relação entre os tribunais e a comunicação social, o juiz desembargador Américo Augusto Lourenço alertava para que perante situações em que “a notícia mais do que um mero relato evidencia uma tomada de posição, um julgamento público, condenando A e absolvendo B, há que tomar medidas sérias sob pena de estarmos perante julgamentos populares na praça pública e desvirtuar por completo a verdade material”. E concluía: “A ‘justiça popular’ ao contrário do que pode soar e mesmo parecer a alguns, é desastrosa e confunde-se com o mero acto de vingança, o que num Estado de Direito Democrático é de repudiar.” Considerando o nosso “sistema de justiça” dos “piores” que conhecia, “não só na Europa como fora dela”, o juiz desembargador terminava a sua reflexão citando a intervenção de António Arnaut no IV Congresso dos Advogados Portugueses: “A vaidade é sempre má conselheira, especialmente para os profissionais do foro...”

 

Depois de na semana imediatamente anterior, na sua coluna no Expresso, ter deplorado o “justicialismo que inspira Carlos Alexandre”, Pedro Adão e Silva, a 17 de Setembro de 2016, sentenciou que “em processos ditos complexos envolvendo arguidos apresentados como poderosos, a dificuldade de sustentar uma acusação sólida é substituída pela formação da culpabilidade no espaço mediático – com uma gestão eficaz de fugas de informação dos processos para os media ou mesmo a plantação em orgãos de comunicação seleccionados de puras mentiras.” Frisando que este estado de coisas não se circunscrevia à Operação Marquês, Adão e Silva criticava as “condenações fundadas na ‘ressonância da verdade’ [e as] avaliações políticas, morais e subjectivas traduzidas em sentenças definitivas”.

 

Aqui chegados, sobram interrogações e uma certeza. Até que ponto a “transferência de legitimidade” nas “democracias descontentes” para o poder judicial, que alguns perspectivam, não redundará numa tentação de hegemonia, assente numa isenção inquestionável e numa propalada superioridade moral (“homens e mulheres livres”)? E o desejo de ver os cidadãos “unirem-se em defesa dos magistrados”, com base em argumentos como “a intolerância dos poderosos” e a “arbitrariedade dos poderes constituídos”, não poderá representar a antecâmara da tal justiça popular? Utilizar a legitimação populista para flexibilizar os limites da acção judicial consagrados na lei poderia satisfazer os instintos básicos dos que se regozijam com a queda dos poderosos, mas significaria um retrocesso civilizacional e uma concessão à barbárie. Eis um dos riscos da “densificação política” da Justiça.

 

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