IMPATRIOTAS E FRASES QUE COLIDEM
Fevereiro 21, 2021
J.J. Faria Santos
A infame petição pública para “expulsar Mamadou Ba de Portugal” é uma variante menos tosca (mas não muito) da vulgaridade asquerosa do “preto, vai para a tua terra”. Com a agravante do visado ser luso-senegalês e da impossibilidade óbvia de deportar um cidadão português. À semelhança da que pretendia impedir a tomada de posse da “impatriota” Joacine Katar Moreira, nesta petição o racismo mais escabroso tem rédea solta, acusando o activista de “fomentar o ódio e o mau estar entre as raças”. E termina com uma admoestação (“Que esta expulsão sirva de exemplo!”), como quem deixa bem claro o código de comportamento exigível das “raças” inferiores e as consequências punitivas de qualquer acto de desobediência.
Os peticionários acusam Mamadou Ba de proferir “afirmações que colidem com os valores do cidadão comum”. É indispensável tornar claro que no trânsito da linguagem da vivência democrática não há sentidos proibidos. Não há sanções para delitos de opinião. Há a responsabilidade individual e os estritos limites da lei. Quanto aos “valores do cidadão comum”, se são os expressos nesta petição, repudio-os com veemência. Trata-se, neste caso, de fazer equiparar o comum a algo de ordinário. E de se considerar como ordinário o que é vil, medíocre, reles.
Não surpreende que, cavalgando a fúria das redes sociais, tenham surgido os aproveitamentos políticos e as tentativas de ajuste de contas com a História. Seria avisado meditar nas palavras de José Mattoso, que em entrevista ao Expresso lembrou a necessidade de “respeitar os factos sem pretender julgá-los. Também não podemos pôr os factos (ou seja, a sua narrativa) ao serviço de uma causa, por melhor que ela seja.” E acrescentou: “Se falamos em neutralidade, falamos em interpretações opostas dos mesmos factos. Neste caso, exige-se a demonstração. Mas a demonstração estabelece hipóteses, não alcança verdades.” E, às vezes, a verdade é como um palácio na bruma, distinto e majestoso, mas com uma aura de inalcançável. Nada que se possa resolver com uma petição pública irada e auto-suficiente.
Ilustração: André Carrilho (Twitter.com)