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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

FRANCISCO SUPERSTAR

Agosto 06, 2023

J.J. Faria Santos

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O espectáculo da fé em todo o seu esplendor, protagonizado pelo carismático Papa Francisco em modo pop star, estreou na Lisboa cosmopolita do eterno retorno.  Um octogenário debilitado que diz que Deus “não é um motor de busca” e que as redes sociais aproveitam dos jovens a sua “utilidade para pesquisas de mercado”, ao passo que a fama e o reconhecimento instantâneos são acção de um algoritmo, conduziu umas jornadas que ficarão marcadas pela sua afirmação veemente de que “na Igreja, há espaço para todos”. Uma afirmação de princípio, fulcral, mas que esbarra, bem sabemos, nos preconceitos e no conservadorismo do clericalismo.

 

Homens de fé, que exultaram com o anúncio da realização da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa (“esperávamos, desejámos, conseguimos”), e homens de pouca ou nenhuma fé, que, todavia, não hesitaram em carregar com a cruz da notoriedade, rejubilaram com aquilo que o semanário do regime já classificou de “sucesso, uma enorme festa popular, cheia de alegria, sonhos e apelos à paz” (uma candidata ao título de Miss Mundo não diria melhor…). Aliás, o Expresso destaca em manchete a “demonstração de força da Igreja”, como se se tratasse de um comeback, um regresso à luz depois de um período encerrada nas trevas, acossada pela tragédia dos abusos sexuais ignorados e aturdida pelas críticas do próprio Papa aos comportamentos pouco católicos.

 

No final, dirão todos que a festa foi bonita e, confrontados com a factura da organização, repetirão o mantra de Rui Moreira: “a alegria não tem valor”, no sentido de que seria um ultraje mencionar os profanos custos perante tão sublime ideal. O mesmo Rui Moreira que em Fevereiro afirmava, a propósito da JMJ, a sua “perplexidade quando um país vive destes eventos, destas festas, quando aqui e ali está a cair aos pedaços, como nos bairros sociais.” Há alegria no céu, também, com a conversão deste céptico.

 

Acabada a festa, a “demonstração de força da Igreja” ver-se-á reduzida a um estado de flacidez, confrontada de novo com a quotidiana negação dos seus fiéis em seguir à letra alguns dos seus preceitos, sobretudo os que se relacionam com a vida íntima e afectiva, e com as contradições insanáveis que a tolhem e desmentem todos os dias a noção generosa da Igreja aberta a todos.

 

Portugal é hoje um país com leis que regem a interrupção voluntária da gravidez e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e prepara a regulamentação da lei da eutanásia. A matriz laica prevalece. Dir-se-ia que a “sensibilidade” católica é permeável aos ensinamentos do Evangelho, mas pouco receptiva a aplicar na vida quotidiana certos ditames da hierarquia.  A ICAR e as suas instituições gozam de privilégios discutíveis (alguns incompreensíveis) e de capacidade de influência assinaláveis. Talvez se possa dizer, como defende Fernanda Câncio, que a “amálgama entre identidade nacional e católica continua a ser descarada e reverencialmente promovida por um Estado que nunca operou a vital separação face à religião ‘oficial’” (ainda para mais quando o Chefe de Estado é um praticante devoto), mas daí a diagnosticar “a agonia do Estado laico” (como escreveu Fernando Rosas) vai uma distância que só a retórica e a hipérbole consentem.

 

No querido mês de Agosto, o espectáculo da fé, a grande ópera católica, que mais que drama cantado ou pregação light foi, sobretudo, a exibição da alegria da adoração de um clube de fãs pelo seu ídolo, instalou-se como uma realidade alternativa. Amanhã, a vida retoma o seu fluxo normal.

 

Aqueles de entre os não-crentes que sentiram uma espécie de opressão pela exibição ostensiva (e intensiva) da fé, caindo até numa aguerrida e deslocada pose de resistência activa familiar do despeito, podem respirar de alívio. A fé também os salva a eles. Nesta circunstância, a ausência dela ou do seu testemunho em modo non-stop.

 

Foto: Leonel de Castro/Global Imagens

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