FELGUEIRAS CONTRA BELÉM
Novembro 13, 2018
J.J. Faria Santos
Dizem que o Presidente está indignado e furioso. E sob ataque. Por parte de quem? O Expresso revela “a convicção em Belém” acerca do rol dos interessados: a Polícia Judicial Militar, “sectores da direita mais conservadora dentro e fora do Exército e “se não o Governo, pelo menos alguns sectores do PS”. O que verdadeiramente enfureceu Marcelo foi a notícia do Sexta às Nove de que a Presidência da República teria sido informada do encobrimento de Tancos.
Daí a proclamação fulminante em tom alegrista: “Se pensam que me calam, não me calam”. Em pouco tempo, o histriónico comentador Marques Mendes veio do alto do seu púlpito televisivo anunciar à populaça, com a eloquência impressiva do português genuíno, que o “Governo ajudou à festa”, “directa ou indirectamente”, que é uma formulação nebulosa útil para todas as eventualidades. Talvez se possa ligar o “indirectamente” à alegada irritação que, a fazer fé no Expresso, o Presidente terá sentido pelo facto de António Costa não se ter pronunciado sobre a tese explanada pelo programa de Sandra Felgueiras.
É nesta fase da cavalgada heróica do Tancosgate que a ironia irrompe a galope – “o mais loquaz presidente da República pós-25 de Abril” (na definição certeira de António Guerreiro no Ípsilon) terá sentido necessidade de uma palavra de conforto do primeiro-ministro. Só faltou, portanto, António Costa voluntariar-se para a tarefa de desmentir La Felgueiras. Como não o fez, “ajudou à festa”. Estará o Marcelo Presidente (2018) assombrado pelas palavras do Marcelo secretário de Estado da Presidência (1982) que afirmou: “Não há dúvida de que o aparecimento em excesso, a intervenção em excesso, acabam por revelar-se contraproducentes não só para qualquer governante como para o órgão de que é titular.” Recriemos António Variações: quando o titular não se cala, o órgão é que paga.
O primeiro-ministro apressou-se a declarar que “o Governo é um livro aberto, não tem nada a esconder”. Claro que os livros abertos facilitam o acesso, mas não garantem a compreensão do seu conteúdo. E o estilo de escrita pode ser mais ou menos propenso a interpretações divergentes. A hermenêutica é um vício para um criador de factos políticos e, talvez por isso, o Presidente esteja “ansioso”, ou Costa ache que ele se excede na demonstração dessa ansiedade, ao passo que o Governo, com sintomas idênticos, opte por uma maior reserva. O dicionário explica-nos que a ansiedade é um “estado afectivo depressivo” provocado pela “apreensão mais ou menos vaga de um mal iminente, real ou imaginário”. Desconfio que a proclamação pública do primeiro-ministro acerca da maleita presidencial possa estar relacionada com a sua suspeita, real ou imaginária, de que no Marcelo de 2018 ainda resida o Marcelo de 1997, altura em que António Costa o via como “um verdadeiro mercado abastecedor da intriga política”.
O Presidente queixa-se do facto da RTP não o ter ouvido, isto é, faltou o contraditório. Felgueiras deveria ter-se deslocado a Belém, onde, depois de uma selfie e de uma longa dissertação presidencial acerca das propriedades terapêuticas dos comprimidos com que ele costuma encher os bolsos, seria brindada com um desmentido formal. E, por mais incisiva e insistente que fosse, seguramente que ninguém lhe retiraria o microfone nem lhe barraria o acesso ao provedor dos afectos. E tinha-se poupado nos ansiolíticos.