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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

FÉ, FOGO E FÚRIA

Julho 02, 2019

J.J. Faria Santos

 

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Há algo de profundamente obsceno em colocar a fé ao serviço de um objectivo político. O mesmo sucede quando se apresenta uma conquista eleitoral como se ela fosse um desígnio divino. Sarah Sanders, actual porta-voz da Casa Branca, declarou no princípio do ano em entrevista a uma televisão cristã que “Deus nos convoca a todos para ocupar diferentes papéis em diferentes momentos", e que “ele quis que Donald Trump se tornasse Presidente e é a razão pela qual ele está lá”. É possível que Trump se sinta um escolhido, de tal maneira que em modo de reeleição até já prometeu a cura do cancro e a erradicação da SIDA.

 

O problema da convicção expressa por Sanders é que o discurso deselegante e prepotente de Trump e as suas políticas divisivas, erráticas e restritivas até à desumanidade são inconciliáveis com uma prática cristã de temperança, acolhimento e misericórdia. Quando confrontado com a fotografia de Oscar Ramirez e da filha Valeria, que se afogaram ao atravessar o Rio Grande, o Presidente americano confessou “odiar” a fotografia e tratou de culpabilizar a oposição, que deveria ter alterado a lei. E aquele pai, que “provavelmente seria um homem maravilhoso”, acrescentou ele, não teria sucumbido juntamente com a filha. Ficamos a saber que Oscar foi poupado à inclusão na lista dos traficantes, criminosos e violadores. Deve ter sido da comoção, embora com o seu vocabulário escasso e a limitado rol de adjectivos que usa (maravilhoso, fantástico, tremendo), quase sempre para se auto-elogiar, é difícil averiguar  o grau de sinceridade ou de consternação. Quanto a Sarah Sanders, quase que apetece questioná-la se ela acha que foi para impor barreiras e muros ao acolhimento de migrantes e refugiados que Deus fez eleger Trump.

 

Com explicou Angelina Jolie de forma cristalina em artigo na Time, intitulado “O que o mundo deve aos refugiados”, estes mais não são que pessoas que  escolhem abandonar situações de conflito, sobrevivem a guerras e com frequência ajudam a reconstruir os seus países. Criticando a forma como se tem esbatido a distinção entre migrante e refugiado, Jolie reclama o direito de todos a serem tratados com dignidade e frisa que “ao abrigo da lei internacional a assistência aos refugiados não é uma opção, é uma obrigação.”

 

As peripécias da presidência de Trump assemelham-se com frequência a uma série manhosa protagonizada por um canastrão com tiques totalitários, mas se há algo que ficções inspiradas como Handmaid’s Tale evidenciam é que um poder absoluto de pendor teocrático pode reclamar como seu um discurso religioso e pervertê-lo. Um grupo de escolhidos ou iluminados pratica a segregação e a discriminação em nome de interpretações autênticas da palavra do Senhor. Não há liberdade sem verdade nem justiça. Conforme se pode ler no documento da Congregação para a Doutrina da Fé Libertatis Conscientia: “(…) cada homem é orientado para os outros homens e tem necessidade da sua sociedade. Somente aprendendo a pôr de acordo a sua vontade com a dos outros, em vista de um bem verdadeiro, ele fará o aprendizado da rectidão do querer. É, pois, a harmonia com as exigências da natureza humana que torna humana a vontade. Com efeito, esta exige o critério da verdade e uma relação justa com a vontade dos outros. Verdade e justiça são, assim, a medida da verdadeira liberdade. Afastando-se desse fundamento, o homem, ao tomar-se por Deus, cai na mentira e, ao invés de se realizar, destrói-se.”

 

Imagem: Oscar Ramirez acompanhado pela filha e pela mulher em foto cedida pela família (www.euronews.com)

 

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