ERA UMA VEZ UM "ALIADO"
Maio 07, 2023
J.J. Faria Santos
Era uma vez um “aliado” que disse que “não faz sentido falar periodicamente de dissolução” do Parlamento e que, no entanto, em menos de quatro meses falou dela pelo menos 10 vezes.
Era uma vez um “aliado” que, depois de ter dito ao primeiro-ministro que “não será politicamente fácil que essa cara que venceu de forma incontestável e notável as eleições possa ser substituída por outra a meio do caminho”, tem insinuado com frequência que esse caminho pode ser interrompido.
Era uma vez um “aliado” que disse à ministra da Coesão Territorial Ana Abrunhosa: “Super infeliz para si será o dia em que eu descubra que a taxa de execução dos fundos europeus não é aquela que eu acho que deve ser. Nesse caso não lhe perdoo. Espero que esse dia não chegue, mas estarei atento para o caso de chegar.”
Era uma vez um “aliado” que na tomada de posse deste Governo assegurou que continuaria "vigiando distrações, adiamentos, autocontemplações e deslumbramentos” e que agora promete estar “mais atento e interveniente no dia-a-dia”. Esteve vigilante, mas não suficientemente atento?
Era uma vez um “aliado” que, citando Pacheco Pereira (Público - 27.01.2018), foi “comentador conhecido pelo seu cinismo, propensão para a intriga e mesmo ajuste de contas nas antipatias próprias” e se transformou num Presidente que “não se coíbe de usar as armas dos políticos populistas modernos, feitos pela televisão, para cultivar uma ‘proximidade’ cujo sucesso é sempre ser ‘contra’ alguma coisa”.
Era uma vez um “aliado” que, a pretexto de se pronunciar sobre determinada lei, anunciou que o Executivo tinha “falta de credibilidade” e inspirava pouca confiança.
Era uma vez um “aliado” cujas prioridades, em tempo de guerra na Europa e com uma inflação persistente a ameaçar o poder de compra das famílias, incluem a análise e teorização sobre sondagens: se o PS cair para 26% ou 27%, se o PSD subir para 35% ou 36%, então talvez se pudesse gerar uma alternativa com a IL e o CDS .
Era uma vez um “aliado” que pouco depois de ter jurado que “temas sensíveis” não são para “tratar na praça pública”, fazia chegar à comunicação social que não se contentaria com menos do que a demissão de um ministro.
Era uma vez um “aliado” que em vez de um tratamento em plano de igualdade pretendia subserviência, que em vez de cooperação solicitava vassalagem, que à lealdade e à frontalidade preferia a dissimulação, que à concertação entre poderes privilegiava a concentração de poderes sob a sua tutela.
Era uma vez um “aliado” que asseverou que não contassem com ele “para criar conflitos, nem deixar crescer tentativas para enfraquecer a função presidencial” imediatamente a seguir a tentar enfraquecer o mandato do primeiro-ministro, imiscuindo-se na prerrogativa deste de nomear e demitir os membros do seu Governo.
Era uma vez um “aliado” que diz ser “o último fusível de segurança política” do sistema constitucional, e que devido a uma sobrecarga de prepotência causada pela alimentação em excesso do ego se arrisca a provocar um incêndio político enquanto sorve um gelado.
Imagem: Rui Gaudencio/Público