EPITÁFIOS NO CORAÇÃO EM TEMPO DE JÚBILO
Dezembro 24, 2014
J.J. Faria Santos
"The Nativity" de Mainie Jellett (Courtesy of www.bert.com)
O conto chama-se Noite de consoada, foi escrito por Altino do Tojal e começa assim: “Eu sentia-me vagamente cão. Nem admira. Quando um homem tem o coração cheio de epitáfios e vê as outras pessoas felizes, é natural que se sinta cão. Gente que sai das pastelarias irradiando espírito natalício; votos de boas-festas; música de sinos… Aquilo produzia-me um vácuo interior pior do que a fome.”
Inebriados pela atmosfera celebratória da quadra, em demanda do presente perfeito, do enfeite original ou da iguaria surpreendente, tendemos a esquecer os deserdados da fortuna ou os rebeldes dos afectos. Entoamos queixumes ao consumismo e deploramos o frenesim que nos retira tempo à comunhão espiritual, mas mesmo assim temos auroras no coração. Podemos por cansaço ou desdém hostilizar o marketing natalício e duvidar da genuinidade dos votos trocados com os semidesconhecidos do dia-a-dia mas, no entanto, reina dentro de nós uma beatitude que nos apazigua.
Mesmo aqueles para quem o espírito do Natal é apenas um intervalo na miséria mais ou menos intensa, mais ou menos transitória, das suas existências, parecem procurar estímulo para um segundo acto de uma peça que subverta a tragédia anunciada e vivida.
“Christmas eve will find me / Where the love light beams / I’ll be home for Christmas / If only in my dreams” canta Doris Day em tom de súplica. A vida pode ser um lugar inóspito onde os sonhos são o último reduto. Parece escasso, mas a escassez é a abundância dos despojados. E quem sabe? Talvez o sonho oblitere os epitáfios e faça justiça à palavra Natal.