ENQUANTO A CIDADE DORME
Dezembro 29, 2022
J.J. Faria Santos
Enquanto a cidade dorme, o Governo desmembra-se. Pela calada da noite, quando todos os gatos são pardos e as hienas se agitam nas sombras, anunciam-se demissões, afiam-se punhais e armam-se ciladas. Inimigos cordiais avaliam cenários, sopesam argumentos, apagam rastos, observam com apreensão o comércio da informação. E os adversários, em reagrupamento ou reestruturação, como tubarões inebriados pelo sangue que goteja, confundem (ou fingem que confundem) os seus desejos com o interesse nacional, acenam com o irregular funcionamento das instituições e decretam o caos irremediável.
Afastado o activo tóxico, a harpia gananciosa que calçava Louboutin, eis que se segue o processo de desminagem em curso, causando danos colaterais de vulto. O Governo, cujo primeiro-ministro se exibiu em entrevista em pose régia e discurso envolto em húbris, parece empenhado em bater o recorde nacional de demissões. Verdadeiramente grave, porém, é a sensação de inércia, que nem sequer pode aspirar a ser confundida com calculismo. Já tarda que António Costa reclame para si as rédeas. Cavalo à solta pode adequar-se à poesia, mas é letal para a administração do poder. Estranha-se que quem resistiu a uma pandemia, suportou os estilhaços de uma guerra e enfrentou o regresso da inflação possa sucumbir à modorra depois de ter alcançado a sua vitória política mais substantiva.
Enquanto a cidade dorme, e o primeiro-ministro se vê impelido a planear a regeneração, eis que o impetuoso André e o nobre falido Nuno reclamam eleições antecipadas. Mas o gongórico Rangel já veio garantir que o PSD exibe uma “postura de sentido de Estado” e que “o país não pode andar de eleições em eleições”. E do alto do seu púlpito, os comentadores indignados, entalados entre as suas convicções íntimas, o brio profissional e os imperativos do share, clamam: “Onde é que anda Luís Montenegro?”