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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

EM BUSCA DAS PALAVRAS PERDIDAS

Setembro 04, 2018

J.J. Faria Santos

Old_Tiger_warhol.jpg

 

Há momentos em que ficamos sem palavras. Por espanto, susto, choque, arrebatamento. Sobrinho Simões, celebrado patologista, por causa de um AVC ficou com o ABC toldado. Quando quis dizer garrafas saiu-lhe gravatas; pronunciou esferográfica mas frustrou-se por não lhe ocorrer caneta; pediu um elevador quando pretendia que lhe trouxessem o jornal. Acordava a meio da noite obcecado por não se conseguir lembrar do apelido de Oscar Wilde ou do nome do mordomo do anúncio do Ferrero Rocher. Agora, regressado à sua rotina diária no IPATIMUP, explicou ao Expresso (Revista, 25/08/2018), que o entrevistou, que anda sempre com um caderno atrás. Certas palavras, como “sussurrar” ou “helicóptero”, só as consegue dizer se as escrever primeiro. Afirma, convicto, que “nós não temos nenhuma razão para acabar”. Antecipa as quatro viagens que vai fazer este mês a angustia-se: “Capacidade posso ter mais ou menos, mas… E se deixasse de me apetecer?”

 

Há algo nos lares de terceira idade que os transforma numa espécie de depósitos de seniores. Podem ser irrepreensíveis, com directores empenhados e cuidadores exemplares, com um corpo clínico atento e um plano de actividades variado (viagens, fisioterapia, promoção de convívio intergeracional), e, porém, quando a vista alcança uma sala de convívio de um desses estabelecimentos o que dela emana é uma atordoante apatia. Resultante de debilidades físicas ou mentais ou de um progressivo esvaziamento da vontade – “E se deixasse de me apetecer?” – o cenário é incompatível com um glorioso envelhecimento activo. Pode ser uma questão de perspectiva, de traço grosso propiciado pelo instante, pelo local ou pela altura do dia. (Se observássemos o grupo noutro contexto, por exemplo numa caminhada ou numa viagem, talvez a impressão se diluísse um pouco.) A sala de espera parece-se demasiado com a antecâmara do fim, onde as palavras escasseiam, perdidas na memória, que nenhum caderno consegue resgatar.

 

Em Leite Materno (Sextante Editora, tradução de Daniel Jonas), Edward St Aubyn descreve assim o ambiente no lar onde Patrick Melrose vai visitar a mãe: “Passaram pela porta aberta de uma sala comum, onde o rugido de um televisor disfarçava outro tipo de silêncio. Os residentes, brancos e amachucados como papel, estavam sentados em filas. O que teria detido a morte que nunca mais vinha?” Pouco depois, em reacção à chegada da família, ela “compôs um sorriso, mas os seus olhos continuavam deslocados, paralisados na desorientação e na dor”. A infelicidade da matriarca por não conseguir exprimir-se fluentemente por palavras é magistralmente apresentada por St Aubyn: “Um pensamento cuidadosamente aparafusado soltou-se e caiu, espalhando-se pelo chão. Ela não conseguia recuperá-lo.” Podemos não ter “nenhuma razão para acabar”, mas o nosso destino é inexorável. E quando os pensamentos se desconchavam e as palavras batem em retirada, começamos a pensar no nosso prazo de validade. Existimos de preferência enquanto estivermos na plena posse de determinadas faculdades, mas como certos alimentos somos perecíveis.

 

Imagem: "Old Tiger" de Andy Warhol (Courtesy of Bert Christensen)

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