É VIOLÊNCIA, MAS NÃO É VIOLÊNCIA DOMÉSTICA...
Maio 23, 2021
J.J. Faria Santos
Uma mulher é agarrada, levantada do chão e arrastada pelo pescoço, pelo companheiro, que tenta forçá-la a entrar num carro. É uma agressão? Sim. É violência doméstica? Não. É uma situação humilhante e cruel? Sim. É violência doméstica? Não. O acto não tem a “crueldade, insensibilidade e desprezo” suficiente para ser considerado com tal. O homem chamou “cobardes” aos militares da GNR que testemunharam a situação e prometeu persegui-los. Trata-se de uma ameaça? Não! O homem nunca quis “matá-los ou sequer bater-lhes”. Muito menos arrastá-los pelo pescoço…Foi um “desabafo”. Como enquadra o Código Penal o crime de violência doméstica? “(…) Infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”. O homem deve ser condenado por violência doméstica? Não. A “conduta do arguido não integra o conceito de maus-tratos previsto no artigo 152º do Código Penal”.
A juíza Isabel Pereira Neto, do Tribunal de Paredes, apesar de provada a agressão, absolveu o homem envolvido na situação acima descrita por considerar que o sucedido não teve gravidade para ser considerado violência doméstica, sendo que a condenação por ofensa à integridade física se tornou inviável pelo facto de a vítima não ter apresentado queixa. Não foi a primeira vez que a violência emergiu ou esteve latente. Num episódio anterior, a mulher precisara de recorrer à GNR para poder entrar em casa, retirar pertences e refugiar-se em casa de familiares. A posterior reconciliação pode configurar o tradicional ciclo da violência doméstica, cujas três fases são descritas no site da APAV nos seguintes termos: “aumento de tensão”, “ataque violento” e “lua-de-mel: o agressor envolve agora a vítima de carinho e atenções, desculpando-se pelas agressões e prometendo mudar”. É um ciclo que se define pela continuidade e pelo agravamento.
Na sua mensagem no Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, António Guterres, na qualidade de Secretário-geral das Nações Unidas, afirmou: “Não basta intervir após o acto de violência contra as mulheres. É também necessário agir a montante da violência, em particular, abordando normas sociais e desequilíbrios de poder. É importante que a polícia e os sistemas judiciais aumentem a responsabilização dos agressores e ponham fim à impunidade.” Agora que toda a gente se mostra preocupada com o funcionamento da Justiça, dos responsáveis políticos e do próprio aparelho judicial até aos jornalistas, líderes de opinião e cidadãos interessados, seria bom que esse empenho não se circunscrevesse aos crimes económicos, ao enriquecimento ilícito e à corrupção. Citando o Presidente da República, em declarações prestadas em Novembro de 2017, “A defesa da vida, a defesa da integridade física e da integridade psíquica das pessoas é um daqueles direitos chamados absolutos” cuja violação merece “uma censura agravada”. A mesma censura agravada que merece, digo eu, a meritíssima juíza, cuja sentença me causa repulsa e me dispenso de adjectivar, para não correr o risco do desrespeito. Embora, tendo em conta a sua magnanimidade, estou certo de que relevaria o meu sarcasmo como um salutar “desabafo”.
Imagem: Sean Hurt / Wikimedia Commons