DR. PASSOS E MR. COELHO
Outubro 22, 2014
J.J. Faria Santos
"Looking out" de Paula Rego (www.bertc.com)
MOTE (A PERGUNTA)
Falando a propósito do Orçamento do Estado para 2015, no ambiente inspirador da Casa das Histórias Paula Rego, o primeiro-ministro enfatizou: “Com que cara é que o mesmo primeiro-ministro que durante três anos explicou ao país que precisávamos de cumprir as nossas metas, que não tínhamos outra escolha senão pôr a casa em ordem para ter a confiança dos investidores, para financiar a actividade económica e o Estado, haveria agora de lhes vir dizer que, porque há eleições, íamos baixar os impostos, aumentar os salários e prometer aquilo que não é realista?”.
GLOSAS (SUGESTÕES DE RESPOSTAS)
Com a mesma cara com que antes das eleições ele lamentava as trezentas mil pessoas que não tinham subsídio de desemprego, que encontrariam nele “um aliado, um amigo”, e agora tem de ser “aliado” de 406 000 desempregados nessa situação.
Com a mesma cara com que deplorava a utilização, por parte do governo anterior, de medidas extraordinárias, e acabou detentor do recorde das receitas extraordinárias (aproximadamente 9339 milhões de euros entre 2011 e 2014, por comparação com 4939 milhões de euros entre 2005 e 2010).
Com a mesma cara com que antes de ser primeiro-ministro dizia que os portugueses tinham “um nível de vida mais caro do que a maioria das sociedade desta Europa fora, com ordenados bem mais baixos” e que ”obrigamos as pessoas a pagarem com aquilo que não têm”, para mais tarde acusá-los de serem piegas e viverem acima das suas possibilidades.
Com a mesma cara com que dizia que se fosse primeiro-ministro não teríamos o país “com as calças na mão a pedir e a impor mais um plano de austeridade” (“Portugal não precisa de mais austeridade”) e congeminou sucessivos pacotes de austeridade que representam mais de vinte mil milhões de euros.
Com a mesma cara com que, antes de ser primeiro-ministro, afirmava: “aqueles que têm mais dificuldade vêem progressivamente o Estado retirar as suas contribuições: é nos medicamentos, é na presença de serviços públicos…”, e como governante, por exemplo, cortou o subsídio de doença e o subsídio de desemprego (montante e período de pagamento), limitou o acesso ao RSI e aumentou as taxas moderadoras.
Com a mesma cara com que afirmou que o IVA não era para subir e aumentou a taxa de vários bens e serviços de 6% para 23%.
Com a mesma cara com que afirmou taxativamente: “como primeiro-ministro, recuso-me a cortar salários”, para, logo em 2011 e só para começar, aplicar aos funcionários públicos com vencimentos superiores a 1500 € um corte entre 3,5% e 10%, e aos trabalhadores do sector público e do sector privado uma redução do rendimento anual correspondente a meio subsídio de Natal.
Os exemplos abundam. Mas é claro que a mesma pessoa que antes de ser governante criticava os que tratavam os “portugueses à bruta” e lhes diziam “nós temos um défice muito grande e, portanto, os senhores vão ter de o pagar” considera estas, digamos, incongruências, como pertencendo ao reino do pragmatismo e não da inverdade. Doutro modo, ver-se-ia forçado a demitir-se, visto ter afirmado a propósito do seu antecessor: “Como é possível manter um Governo em que um primeiro-ministro mente?”.
Podemos estar descansados. “Não dizemos hoje uma coisa e amanhã outra”, afirmou em tempos o líder do Governo recordista na arrecadação de impostos (37,1 mil milhões de euros previstos para 2014, 38,8 mil milhões de euros para 2015). E acrescentou: “Precisamos de valorizar cada vez mais a palavra, para que quando ela é proferida possamos acreditar nela”. Felizmente, em tempos conturbados de vagas alteradas e tsunamis imprevistos, temos este irrepreensível farol ético. Que só tem uma cara.