DOIS FUNERAIS FICTÍCIOS E UM CASAMENTO REAL
Junho 05, 2018
J.J. Faria Santos
Funerais e casamentos são fundamentalmente acontecimentos sociais que terminam com despedidas. Para a última morada no mármore frio ou para a lua-de-mel numa exótica ilha tropical. Para os enlutados, as obrigações sociais podem constituir um acervo de afectos que minimizem a dor, mas podem também ser um conjunto de rituais mecânicos quase impessoais. Que conduzem ao desconforto e à exasperação. Yasmina Reza exemplifica bem este ponto ao colocar na boca de uma viúva, na sua obra Felizes os Felizes (Quetzal, tradução de Ana Cristina Leonardo), as seguintes palavras: “- Oh, meu Deus, a ideia de ter de cumprimentar todas as pessoas mata-me. Tudo isto me mata. Este mundanismo. Tudo para esta merda de crematização. De cremação, corrijo-a. – Oh, de não sei o quê, ele enerva-me, esse cangalheiro, com as suas palavras impossíveis!” O cair do pano do espectáculo da vida cria uma espécie de pânico social nesta mulher, que ela compara à própria morte, e a sua ira não poupa sequer o circunspecto mestre-de-cerimónias.
David Melrose, criatura saída da imaginação de Edward St Aubyn, tem do alto do seu snobismo e do seu desprezo pelas convenções da classe média, uma visão mais cínica dos funerais. Ao contrário de baronete Nicholas Pratt que os prefere aos casamentos porque “o público é melhor quando alguém realmente distinto morre”, David não aprecia a cerimónia, primeiro porque considera não haver “nada na vida da maioria dos homens que mereça ser celebrado”, e depois porque a duração das exéquias “longe de reacender o espírito do nosso amigo desaparecido, apenas serve para mostrar o quão facilmente se pode viver sem ele.” Fiel à brutalidade dos seus modos, a crueza das suas afirmações espelha a sensação de impunidade que o estatuto lhe confere, e os assomos de magnanimidade surgem como um mero apêndice da apologia da preservação dos da sua espécie. Como quando afirma: “Deveríamos ir apenas a homenagens em memória de inimigos. Além do prazer de lhes sobreviver, é uma oportunidade para tréguas. O perdão é tão importante, não acham?” (Deixa lá, de Edward St Aubyn, publicado por Sextante Editora, tem tradução de Daniel Jonas.)
O casamento foi real, em mais do que uma acepção da palavra. Mas foi também uma espécie de conto de fadas, tingido por laivos de ficção, em versão politicamente correcta e socialmente disruptora. A plebeia americana, divorciada e descendente de mãe negra Meghan Markle pode ter tido o efeito de, na síntese da revista Time a um artigo de Afua Hirsch, “finalmente estar à altura de uma Grã-Bretanha multicultural”. O que é que isto significa naquilo que Hirsch denomina de “sistema de classes antimeritocrático e socialmente imóvel na sua essência” é a grande incógnita. Num outro artigo da mesma publicação, Daisy Goodwin explica que “a ameaça real para a monarquia não reside nos seus novos membros pouco convencionais mas sim na indiferença dos súbditos.” Quanto a Markle, Goodwin adverte que não pode ser uma “princesa hashtag”, ou seja, terá de exercer o seu activismo de forma discreta. Um bom conselho, a fazer fé no ditame de Edward St Aubyn de que “nada põe os ingleses mais à beira de um ataque de nervos do que uma mulher com opiniões feitas, a não ser uma mulher que continue a defendê-las.”