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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

DA ARTE DA SEDUÇÃO: MANOBRAS DE APROXIMAÇÃO

Julho 17, 2021

J.J. Faria Santos

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Será exagerado dizer que as manobras de sedução se tornaram ainda mais pantanosas com o eclodir do movimento #MeToo e a redefinição dos códigos da masculinidade? Nada que um subversivo sentido de humor não consiga ultrapassar. O cenário é uma churrascada diante do Departamento de Matemática de Princeton. Adrian, um probabilista, prepara-se para abordar Meredith, topóloga, impulsionado pela ingestão de duas cervejas e pela memória do duvidoso elogio que ela lhe atirara um dia, o qual girava à volta de ele ter “um físico à Ryan Gosling, numa versão degradada e um bocado careca”. Tentando manter o equilíbrio, ele abre o jogo:

 

“- Bebi – diz, de chofre.

- Confirmo – responde Meredith, que realmente achou o porte dele muito pouco estável.

- E tresando a cerveja, desculpe.

- Eu também, Adrian, por isso nem dou por nada.”

 

Pouco depois, Meredith, que “desconfia de que ele é brilhante” e que “se fosse incompetente, há muito que teria partido para o mundo financeiro”, embarca numa tirada confessional que incluem lamentos por uma habitação manhosa, uma viatura híbrida avariada e uma relação terminada. Imparável, prossegue:

 

“- (…) já lá vão, deixe-me fazer as contas, quatro meses que não faço amor. Estamos no final de Junho? Então, não, seis. Seis meses, e nem sequer foi lá grande coisa. E consigo, Adrian, está tudo bem? A casa, o carro, o sexo?

(…) – Ah… O meu carro não está avariado. Tenho água quente. E…

- Então, porque é que anda sempre com esse ar de cocker triste que se afoga na sua tigela?”

 

No epílogo desta sequência, Meredith manifesta vontade de beber mais uma cerveja, sugerindo Adrian, em alternativa, o consumo de tequila para acelerar o “coma alcoólico”, o que implica entrar no edifício. Diante da porta que permitirá o acesso à tequila, o diálogo atinge o ponto crucial:

 

“ – Sou britânica. Adrian, aviso-o já: se tentar violar-me, olhe que eu deixo e pensarei na rainha.

 - Bebeu de mais, Meredith.

- E você, de menos.”

 

Eis senão quando, já na iminência de ceder às tentações da carne, Adrian se vê forçado a sacar do seu estridente e vibratório smartphone e sai esbaforido. O dever chama, o Estado reclama o monopólio do uso dos seus neurónios. O apelo do desejo é inútil, resta-lhe tentar retomar mais tarde o potencial inexplorado desta cimeira bilateral anglo-americana. Preferencialmente sem tequila, diria eu. Embora Meredith tenha tomado a iniciativa, há que acautelar o consentimento e a consciência, evitando o sempre nebuloso encontro amoroso sob a influência dos vapores alcoólicos. A lição a reter deste epílogo é que não há nada como o sentido de Estado para acabar com a sedução. E ainda dizem que poder é afrodisíaco…

 

(Adrian Miller e Meredith Harper são personagens da obra A Anomalia de Hervé Le Tellier, cujos extractos citados correspondem à edição portuguesa da Editorial Presença, com tradução de Tânia Ganho.)

 

Imagem: Pormenor de foto de Peter Lindbergh (On Fashion Photography)

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