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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

COITADOS DOS RESSENTIDOS

Junho 01, 2025

J.J. Faria Santos

Jacques_Callot,_Envy,_probably_after_1621,_NGA_536

Reunidos em assembleia no café central, os ressentidos vociferam contra os malandros do rendimento mínimo, os estrangeiros que lhes roubam o emprego e os políticos que são todos corruptos. Nesta assembleia popular há sempre espaço para o agravo sentido, para a sentença irrecorrível e para a pulsão totalitária. Cada sonho desfeito, cada ambição destroçada, cada plano transviado têm um culpado atribuído: um país castrador ou pouco disponível para apoiar o empreendedorismo, a globalização e a sua coluna de derrotados, uma classe política incapaz de reformar o país, o deslassar da autoridade e do respeito pelos valores tradicionais.

 

Em momento algum o ressentido vira o seu aguçado sentido crítico para si próprio. Em momento algum pondera as suas insuficiências e os seus erros ou alvitra investir no conhecimento ou na formação para ultrapassar contrariedades. Se mais não fosse porque o ressentido é um crente involuntário num benchmarking muito pessoal, aquele em que não é necessário identificar qualidades ou padrões de sucesso porque ele próprio é, naturalmente, um farol de excelência. E se o outro (cuja observação é a ocupação primordial do ressentido) simplesmente existe no espaço público, demonstra alguma satisfação com o seu estilo de vida, exibe sinais de algum desafogo ou ocupa alguma posição que o ressentido julga ser sua por direito natural, a afronta atinge proporções épicas. No fundo, o ressentido é a denominação politicamente correcta do invejoso, mais do que do injustiçado.

 

O ressentido não se preocupa com a verdade nem com a coerência. O ressentido não se inibe de fazer proclamações de carácter racista ou xenófobo. O ressentido pretende o monopólio da protecção e deplora a “visibilidade” dada às minorias. O ressentido ama Portugal, o Portugal dele, o Portugal dos oradores desbocados no speaker’s corner do café, o Portugal do corajoso no meio da turba, o Portugal dos “bons costumes”, da subserviência agradecida, da caridade com hora marcada, das mulheres que se sabem comportar, no fundo do Portugal sem as “portas escancaradas” para o mundo. O ressentido pode ter orgulho de termos “dado novos mundos ao mundo”, mas dispensa que este nos entre pela casa adentro.

 

Consta que temos de compreender, acarinhar e proteger os ressentidos. Compreender, parece-me sensato; já acarinhar e proteger, parece-me problemático. Em primeiro lugar, não são uma espécie em extinção, antes pelo contrário. E em segundo lugar, também não são um rebanho tresmalhado. Na verdade, trata-se de uma manada com uma devoção que raia o místico e o fanático por um pastor que quer ser o guia de toda a comunidade, e não apenas dos ressentidos. E não há que ter receio, passe a expressão, de “chamar os bois pelos nomes”. O ressentimento pode ser o leitmotiv para formas de protesto pouco ou nada construtivas, mas não pode ser um salvo-conduto para proclamações racistas, xenófobas, antidemocráticas ou fascistas. Não gostam? Temos pena. E, sobretudo, ainda temos a liberdade de expressão.

 

Ilustração: "Inveja" de Jacques Callot

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