CAUSA PRÓPRIA
Janeiro 23, 2022
J.J. Faria Santos
Sombras e nevoeiro. O lago dos patos e os despojos de um crime. O bailado da juventude inquieta de uma pequena cidade. O rasto do preconceito. O que toda a gente sabe e o indizível. Causa Própria, série de Rui Cardoso Martins e Edgar Medina, realizada por João Nuno Pinto, alcança um notável equilíbrio entre o ritmo de progressão da acção e a criação de uma atmosfera de tensão e dúvida, adensada por uma banda sonora pungente e inquietante da autoria de Justin Melland, autor cuja afinidade com o trabalho do responsável pela banda sonora de Twin Peaks, Angelo Badalamenti, se nota.
Aliás, à semelhança da série de David Lynch, o retrato é o de uma pequena cidade, onde quase todos se conhecem e partilham afectos e afinidades, mas também onde se silenciam violências em nome da boa vizinhança e as consciências podem permanecer neutras perante os interditos e o inadmissível. Porque afinal boys will be boys e o carácter fortalece-se perante as adversidades, mesmo quando estas se manifestam através da desproporção de meios. E se é fácil censurar e condenar o mal quando ele se apresenta com o rosto medonho do desconhecido e do repelente, como lidar com esse mesmo mal quando ele nos toca pela beleza ou pela familiaridade?
O dilema da juíza protagonizada por Margarida Vila-Nova, dividida entre a protecção da família e o imperativo moral de exercer a sua função com isenção, pode ser também, dir-se-á, o dilema de uma povoação inteira, forçada a enfrentar o perfil chiaroscuro dos filhos da terra. Mesmo numa sociedade cada vez menos condicionada pela religiosidade, continuamos a querer que alguém nos livre do mal, e a olhar para as suas manifestações com aquele sentimento de estranheza, espanto e impotência que nem mesmo os inspectores interpretados por Nuno Lopes e Catarina Wallenstein, apesar das suas qualificações e experiência, conseguem evitar.
Causa Própria apresenta uns interlúdios na trama principal, constituídos por cenas de tribunal, ora trágicas ora caricatas, compondo um bouquet de casos à espera de uma resolução satisfatória, por vezes frustrada. É que na mediação das relações humanas, não há como escapar ao erro e à imperfeição. E por mais que repetidamente nos surpreendamos com a irrupção do mal, sabemos que ele tem quase sempre um rosto humano. Resta-nos, como no tema-título da série Twin Peaks, onde Julee Cruise cantava “Don’t let yourself be hurt this time”, escapar às suas investidas. Até um dia.
Imagem: media.rtp.pt / Flickr