BIBLIOTERAPIA (E UMA ESPERANÇA EM FORMA DE HASHTAG)
Abril 06, 2020
J.J. Faria Santos
Ler faz-nos mais felizes? A newsletter do editor da New Yorker, David Remnick, que deu entrada na minha caixa de correio electrónico sob o título A crise do coronavírus: “Tenho estado mais assustado com isto do que estive com o 11 de Setembro.”, estava organizada por tópicos, o último dos quais intitulado Departamento das Distracções. Neste, a primeira proposta de leitura apontava para um artigo da escritora Ceridwen Dovey (Can Reading Make You Happier?) acerca da sua experiência e dos méritos da biblioterapia.
Dovey, antes mesmo de clarificar o conceito (“designação lata para a prática ancestral de encorajar a leitura para efeitos terapêuticos”), faz questão de explicar que sempre reagiu com certa cautela ao que ela chama de “evangelismo peculiar de certos leitores”, que nada mais é que o hábito de nos recomendarem livros com um “brilho beatífico no olhar”, na ilusão de nos entregarem um tesouro com remédios infalíveis ou deleites indescritíveis, como se, frisa ela, “os livros não tivessem diferentes significados para cada pessoa – ou até diferentes significados para a mesma pessoa – em variados períodos das suas vidas.” Não posso concordar mais, de tal forma que eu, que tenho o hábito de sublinhar a lápis determinadas passagens dos livros (prática nada original, aliás…) – ou porque adquirem especial significado para mim ou porque o brilhantismo da formulação ilumina o talento do autor – , dou por mim mais tarde, quando faço uma releitura, a tentar perceber o que me motivara a reparar em determinada frase ou expressão.
A autora, que experimentou a biblioterapia, explica-nos que o método de tratamento remonta à Grécia Antiga, onde, na biblioteca de Tebas, se podia ler a inscrição “local de cura para a alma”, e ainda que no final do século XIX Freud usou a literatura nas suas sessões de psicanálise. E destaca um estudo de 2011, publicado no Annual Review of Psychology, onde se conclui que quando as pessoas lêem algo sobre uma dada experiência, ocorre uma estimulação das “mesmas regiões neurológicas tal como se estivessem elas próprias a passar pela experiência”. Portanto, pode dizer-se que a tão glosada noção de que ao ler literatura de viagem se pode viajar sem sair de casa é mais do que um produto da imaginação…
Ceridwen Dovey enumera os benefícios para a saúde que a leitura proporciona. Diz-nos que ela nos induz um estado de transe semelhante à meditação, e que os leitores regulares “dormem melhor, têm níveis mais reduzidos de stress, maior auto-estima e taxas mais baixas de depressão”. Confesso algum cepticismo em relação a alguns destes efeitos, mas, para ser justo, Dovey também cita testemunhos doutro teor, como o de Suzanne Keen, que no seu livro de 2007 A Empatia e o Romance notou que “os leitores também podem ser anti-sociais e indolentes. A leitura de romances não é um desporto de equipa.”
Neste artigo de Junho de 2015 que o editor da New Yorker decidiu recuperar como sugestão de leitura sobre a leitura, Dovey cita um ensaio de Marcel Proust que parece adequar-se (também) a este tempo de isolamento social. “Com os livros não há sociabilidade forçada. Se passamos a noite com esses amigos – os livros – é porque realmente o queremos”, escreveu Proust. É um testemunho de amizade indestrutível, que, evidentemente, não substitui os laços que se estabelecem entre seres humanos.
Quanto à minha experiência pessoal, actual, agora que os primeiros sinais de esperança coexistem com os primeiros indícios de saturação causados pelo recolhimento domiciliário, a leitura de A Peste de Albert Camus estimula-me a reflexão sem me provocar insónias. Escreveu Camus lá mais para o fim do romance: “Era preciso esperar ainda. Porém, à força de esperar, não se espera já, e a nossa cidade inteira vivia sem futuro.” Para alimentar a vontade de futuro, temos de continuar a mobilizar-nos enquanto comunidade, revivificar o nosso sentido de humanidade. Enquanto termino a leitura de Camus, tenho Evelyn Waugh em lista de espera. De Reviver o Passado em Brideshead, recordo a série televisiva, que via com o meu avô. O mesmo avô com quem ia colher amoras silvestres, com as quais fazia um delicioso sumo. Biblioterapia é capaz de ser também isto: a partir de uma dada leitura, deixar fluir a memória e o pensamento, revitalizar todo um património de afectos e solidariedade, redescobrir o prazer de viver em tempos desafiantes. Tempos em que sabemos que não vamos todos ficar bem, mas não desistimos de tentar tornar realidade uma esperança em forma de hashtag.