AUTOCRACIA AMERICANA
Setembro 21, 2025
J.J. Faria Santos

Seria irónico, se não fosse alarmante a dissonância entre o propósito alardeado e a prática anterior e posterior, que Donald Trump tivesse assinado no primeiro dia do seu segundo mandato um decreto intitulado “Restaurar a liberdade de expressão e terminar com a censura federal”. Nele recordou que a Primeira Emenda da Constituição garantia aos americanos o direito de “falar livremente na praça pública sem a interferência do Governo”, ao mesmo tempo que defendia que nos “nos últimos quatro anos, a anterior administração atropelou o direito à liberdade de expressão ao censurar o discurso dos americanos nas plataformas online”. Argumentando que a censura é “intolerável numa sociedade livre”, propôs-se assegurar que “nenhum funcionário, empregado ou agente federal se envolvia ou facilitava qualquer conduta que cerceasse de forma inconstitucional a liberdade de expressão de qualquer cidadão americano”.
O que se esboçara no primeiro mandato acentuou-se para lá da caricatura, ameaçando as fundações da democracia americana e o etos inerente ao sonho americano de liberdade e prosperidade, com repercussões na ordem mundial e no direito internacional. O que levou o V-Dem, no seu Relatório da Democracia 2025, a aludir ao “episódio de autocratização mais rápido que os EUA viveram na história moderna”. “A expansão do poder executivo, o enfraquecimento do poder fiscal do Congresso, as ofensivas contra as instituições independentes e contra os meios de comunicação social, bem como a eliminação e o desmantelamento das instituições do Estado – estratégias clássicas dos autocratizadores – parecem estar em acção”, prossegue o V-Dem numa caixa justamente intitulada “EUA – Formação de um colapso democrático?”, em que o ponto de interrogação exprime mais incredulidade que surpresa e, porventura, um módico de esperança nos pesos e contrapesos dos poderes do Estado.
O cancelamento do programa de Jimmy Kimmel é apenas mais um episódio de ataque à liberdade dos meios de comunicação social, onde pontuam pontas de lança como o presidente da Comissão Federal de Comunicações ou os próprios Donald Trump e J. D. Vance. Aparentemente vale tudo: ataques personalizados a apresentadores, jornalistas e colunistas, ameaças de cancelamento de licenças, o condicionamento mais ou menos subtil de negócios pendentes, apelos a despedimentos e à denúncia pública de comportamentos. Como escreveu David Remnick, editor da New Yorker, a Primeira Emenda vai ser submetida a um teste sem precedentes. E acrescentou: “O Presidente está a tentar carregar na tecla Mute para a sátira, para o jornalismo incisivo, para a crítica. A questão é: Quem é que vai baixar a cabeça (bow down) e quem, em nome da liberdade de expressão e da Constituição, vai dizer o que pensa (speak up)?”