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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

AS ESTAÇÕES DO AVILTAMENTO

Junho 19, 2022

J.J. Faria Santos

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É meia-noite. Limiar de um novo dia. Sentado na cama, ouço a Smooth FM e folheio A Promessa do Damon Galgut. Não procuro na literatura tranquilidade e apaziguamento, mas julgo ter o traquejo suficiente para controlar a inquietação. Não sou dado a noites turbulentas de sono irregular. Muitos diriam que é sinal de consciência tranquila. Eu suspeito que tal de deve a uma generosa mas limitada no tempo (felizmente…) dose de inconsciência.

 

“A sobrevivência não é instrutiva, é só humilhante”, leio, e dou comigo, contrariado, a rememorar episódios banais, destituídos da grandeza da tragédia inelutável, cenas insusceptíveis de causar grandes traumas, mas que, porém, permanecem alojadas na memória, que as registou e preservou no atoleiro das coisas desagradáveis. Não invadem os meus pensamentos a toda a hora, mas quando uma verdadeira maré negra se aproxima, como réplicas aparentemente insignificantes estes capítulos do passado reaparecem na carta de navegação, pontos negativos que que se subtraem à nossa perícia na arte de viver (às vezes, sobreviver).

 

No livro, Anton, reflectindo sobre a sua trajectória de vida, com um falso distanciamento, conclui: “A dignidade foi a primeira coisa a desaparecer, largaste-a como se fosse um trapo sujo, na berma da estrada, e essa foi a primeira estação do aviltamento, muito piores estavam para vir”. É provável que estas palavras estejam condicionadas pelas circunstâncias (o funeral do pai, o reencontro com a família após 10 anos de afastamento) e pela frustração de expectativas e ambições pessoais. E pela constatação irremediável de que, a menos que seja tocada pela graça divina ou pela sorte, nenhuma existência se consegue eximir ao embate com a crueldade da nossa imperfeição. Nem sempre somos corajosos, nem sempre somos justos, nem sempre somos humanos.

 

A menos que sejamos terrivelmente abjectos, a nossa vida dificilmente será a loja de horrores que possa ser definida como uma sucessão de “estações do aviltamento”. Aqui e ali, haverá oportunidades de redenção numa qualquer temporária via-sacra. Às vezes, até nos surpreendemos com o resquício de humanidade que descobrimos em nós e que julgávamos perdido. E percebemos como fomos duros connosco, como nos deixámos soterrar no pântano da autocrítica militante, que não deixa folga para que a nossa auto-estima respire.

 

“Segue em frente porque, se o fizermos, acabaremos por chegar a um fim”, escreve Damon Galgut, penetrando na consciência de Anton. O importante, claro, é chegar a um fim (ou vários) antes do fim derradeiro. Depois da humilhação, da sobrevivência, da duvidosa instrução, dos pequenos triunfos e das inesperadas recompensas, no final da caminhada poderá restar a aquietação, a sensação de nos termos apresentado ao mundo equipados com a mais preciosa das nossas possessões: a nossa feroz individualidade, marca que torna cada um de nós único e inimitável.

(A Promessa, de Damon Galgut, tem edição portuguesa da Relógio D´Água e tradução de José Mário Silva)

 

Imagem: La Mémoire de René Magritte (wikiart.org)

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