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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

A SEGUNDA MORTE DE MARGARET THATCHER

Outubro 01, 2014

J.J. Faria Santos

Era uma rua sossegada, pontuada por velhas árvores que lhe proporcionavam sombra. Por trás dos jardins dos números 20 e 21 situava-se um hospital privado onde, três dias antes, a primeira-ministra entrara para ser submetida a uma pequena cirurgia ocular. No apartamento do outro lado da rua, uma mulher acabava de colocar uma garrafa de Perrier no frigorífico quando a campainha tocou. Julgando tratar-se do canalizador, ordenou-lhe que subisse. O primeiro equívoco desfaz-se para logo outro nascer. Com o frenesim mediático que tomara conta da rua, depreende que ele é um fotógrafo ao serviço de um qualquer meio de comunicação social. O que dá origem a engenhosos diálogos à volta da palavra shot (disparo da objectiva / disparo da arma). A dada altura, a mulher tece considerações pouco abonatórias acerca de Thatcher, aludindo “à sua falsa feminilidade”, ao seu amor pelos ricos, à sua ignorância, e à “ausência de piedade”, rematando: “Porque é que ela precisa de uma operação aos olhos? É porque não consegue chorar?”
Com o passar do tempo, e enquanto aguardam a saída da paciente do hospital, estabelece-se uma certa cumplicidade entre a londrina que não tem qualquer simpatia pela primeira-ministra, e que se sente hipócrita ao dizer-lhe que também não acredita na violência como solução, e o operacional do IRA que sabe que alcançar o objectivo que se propõe terá como preço a sua própria vida. A narrativa termina com o atirador a ajoelhar-se para melhor se posicionar para o tiro, enquanto Thatcher emerge do hospital com uns enormes óculos escuros, a mala usada “como um escudo” e o seu cabelo impecável, “que brilha como uma moeda de ouro na sarjeta”.
The Assassination of Margaret Thatcher, um conto de Hilary Mantel, teve direito a pré-publicação no jornal The Guardian e suscitou viva polémica. Choveram acusações de desrespeito pela sua memória e pela família, de ofensa às vítimas do IRA e de poder ser interpretado como uma forma de legitimar a violência como expediente para desalojar um líder democraticamente eleito. Para isto terá contribuído a declarada hostilidade da autora perante tanto a figura de Thatcher como a sua prática governativa. Exercícios de ficção sobre a realidade sempre foram matéria de literatura. Porém, convém não exagerar o poder da ficção interferir na vida quotidiana, mesmo que a vida por vezes imite a arte. O efeito copycat não precisa de inspiração ficcional, e mesmo quando a ela recorre isso não autoriza que com o pretexto das acções de mentes criminosas se condicione o acto criador.
The Assassination of Margaret Thatcher deve ser apreciado pelos seus méritos literários. É um irresistível thriller psicológico que encena um conflito de valores em que os sentimentos mais íntimos colidem com os imperativos morais, num contexto de violência latente. Vê-lo como um ajuste de contas, ou como uma apologia da violência, mais que redutor é um disparate.

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