A PROCURADORA DESAPARECIDA
Novembro 19, 2019
J.J. Faria Santos
A Procuradora desapareceu dos ecrãs. Queixou-se em entrevista do facto da SIC lhe ter consignado inicialmente 18 minutos para acabar com 8. Foi-lhe proposto um formato de entrevista que ela recusou. Preferiu afastar-se. Porquê? Porque ninguém ia “aceitar ser entrevistado” por ela, “só personalidades de terceira e quarta categoria”. A intrépida Procuradora não resistiu a alimentar uma teoria da conspiração: “receberam muitas pressões para me afastar”. A estação televisiva considera a existência de pressões uma “fantasia”.
No perfil profissional de Manuela Moura Guedes a coragem e a incisividade estiveram quase sempre acompanhados pela petulância e pela insolência. O que não seria demasiado perturbador se subjacente às suas peças jornalísticas não estivessem, muitas vezes, a superficialidade e a postura militante que dinamitavam a neutralidade e amalgamavam factos e opiniões. O que contribuía para a sua descredibilização mesmo quando poderia estar no rumo certo. Era como se para divulgar informações e, sobretudo, enunciar presunções e emitir julgamentos lhe bastasse um feeling baseado na sua experiência jornalística e no conhecimento dos bastidores do poder. E por isso, a sua agressividade (muitas vezes a roçar a má-criação) pode também ser entendida como um sintoma de insegurança. E a alusão a pressões, genérica e infundamentada, um recurso típico ao populismo: a justiceira injustiçada a ser vítima dos protectores dos poderosos.
Um trabalho desenvolvido no âmbito de um Mestrado em Ciências da Comunicação da Universidade do Minho (Limites, neutralidade e troca de papéis na entrevista televisiva) fez uma análise à entrevista conduzida pela jornalista a Marinho Pinto, em Maio de 2009, no Jornal Nacional da TVI. A reacção enérgica de Marinho Pinto levou os autores a considerarem que este se “apropriou” do “poder legítimo da jornalista”, e que esta a dado momento perdeu “o controlo sobre a condução da entrevista”. E relatam a forma como ela desviou “o olhar da câmara e do entrevistado, agarrando-se às notas” que tinha na secretária. Tendo começado por realçar que “é expectável que a postura do jornalista seja de mediação (neutro, exigente, mas implacável), mais incisivo e impertinente do que complacente”, os autores concluíram que neste caso Manuela Moura Guedes acabou por “converter a entrevista num debate”, tendo ocorrido “um desvio da posição neutral” que conduziu “a um claro choque frontal entre a postura da jornalista e as determinações inscritas no Estatuto do Jornalista e no Código Deontológico da profissão”. E acrescentam que este género de episódio televisivo se enquadra na chamada informação-espectáculo.
Poderíamos desvalorizar esta heterodoxia em relação à prática jornalística corrente se o resultado dessa opção fosse o esclarecimento dos factos e o rigor e a probidade na inquirição. Mas o apetite que Moura Guedes revela pelo confronto e pelo julgamento parece ser demasiado sôfrego para se deter perante a insuficiência de dados disponíveis ou pela sua ambiguidade. Estabelecida a sua verdade, parte para a hostilidade aberta para com o entrevistado. Mas se este riposta, com a capacidade retórica e/ou com a indignação dos rectos, a Procuradora sente-se posta em causa, vilipendiada, perseguida. Como se estivesse livre de escrutínio, imune à crítica, alcandorada ao Olimpo do jornalismo agressivo que denuncia corruptos, pedófilos e toda a sorte de monstros, firmemente encavalitada na sua apregoada “independência”, ungida como Procuradora do Povo e dotada de infalibilidade papal.
“Limites, neutralidade e troca de papéis na entrevista televisiva – A entrevista de Manuela Moura Guedes a António Marinho Pinto no Jornal Nacional de Sexta, TVI (22 de Maio de 2009)” por Ana Isabel Gomes Melro, Helena Filipa Carvalho, Mariana Lameiras de Sousa e Vítor de Sousa (revista Comunicação e Sociedade)
Imagem: Instagram de Manuela Moura Guedes