A PENSAR É QUE A GENTE SE ENTENDE
Novembro 05, 2019
J.J. Faria Santos
O mundo em que vivemos incita-nos a comentar, intervir, promover produtos, acções e ideias na esfera pública. Em permanência. De tal maneira que parece uma forma de abstenção cívica e social não comentar a gaguez de Joacine e a saia do seu assessor, o caso da freira de um mosteiro italiano que foi ao médico com queixas de dor de estômago e descobriu que estava grávida ou o pouco subtil paralelo estabelecido por Nuno Melo entre Marcelo e André Ventura, pelo facto de ambos terem sido eleitos após anos de comentário televisivo. Por vezes, parece-me que toda a gente tem algo de relevante a acrescentar ou pelo menos sente a necessidade de marcar presença. Serei o único a ter a percepção de que se determinado assunto foi devidamente esclarecido e escalpelizado, sujeito a contraditório e debate, a minha opinião pode ser dispensável ou supérflua?
Javier Marías escreveu em Coração tão branco que “(..) é tão fácil não responder ao que não se deseja com quem comenta tudo e fala sem parar, as palavras sobrepõem-se e as ideias acabam por se perder, embora às vezes, se se insistir, regressem”. Sim, a nossa intervenção nas redes sociais e no espaço público em geral deveria ter sempre as ideias como ponto de partida. De preferência reflectidas e maturadas. E deveríamos fazer um esforço para evitarmos as afirmações definitivas, as condenações sem apelo, o atoleiro em que se transforma a indignação quando decisões complexas ou atitudes irreflectidas mas irremediavelmente humanas são impiedosamente censuradas com a facilidade de um teclar numa caixa de comentários.
Javier Marías escreveu também que “as coisas difíceis parecem possíveis depois de pensarmos um pouco sobre elas, mas tornam-se impossíveis se pensarmos de mais”. É uma frase que, se à primeira vista, parece associar o excesso de reflexão à passividade e à desistência, pode igualmente ser entendida como um aviso contra o voluntarismo e a impulsividade. Não devemos ter medo de encarar desafios difíceis, mas também não devemos recear o acto de pensar, sobretudo se ele servir para refrear os nossos instintos mais primários.
(Coração tão branco de Javier Marías tem edição da Alfaguara e tradução de Fátima Alice Rocha)
Imagem: Wikimedia Commons