A OUSADIA DA CO-GOVERNAÇÃO
Setembro 04, 2022
J.J. Faria Santos
Marcelo é Presidente da República, analista político informal, director de comunicação da sua Casa Civil, fonte jornalística e técnico de balões (ele diz que, em determinadas situações, se não tivesse “intervindo o balão inchava”, mas desconfio que noutras ocasiões terá soprado com força).
Esta semana esteve ocupado a justificar-se perante a sua família política, na Universidade de Verão do PSD. Questionado por um jovem que aludiu à sua “benevolência” e “compaixão pelo Governo”, respondeu: “O Presidente vai tendo presente em cada momento a vontade popular, a situação vivida, a existência que sempre defendi de alternativas. Disseram muitos: foi uma benevolência que não foi compreendida por sectores da sociedade, mas foi pelo povo que foi votando.” Como observou o Papa Francisco, ter compaixão é “aproximar-se e tocar a realidade. Não olhá-la de longe”. O PR, como bom católico, aproximou-se da realidade (incluindo a realidade virtual dos estudos de opinião) e moldou o seu registo de actuação em função da avaliação que fez dos dados disponíveis.
A existência de uma maioria absoluta veio dificultar a sua acção e retirar-lhe margem de manobra em termos institucionais, mas, por outro lado, libertou-o para apostar nas acções mediáticas. É previsível o aumento das declarações em que, apostando no poder da influência, simula ou sugere uma espécie de co-governação. Como foi o caso desta semana, brindando-nos com as suas preferências sobre a forma de gestão do SNS e tecendo considerações acerca da urgência dos apoios para combater as dificuldades trazidas às famílias e às empresas pelo aumento da inflação. O PR é o mestre dos equilíbrios precários. É por isso que mesmo interessado em dar um impulso a Montenegro e em promover o desgaste do Governo, enquanto este não estiver numa trajectória descendente irreversível, prosseguirá a sua estratégia de elogios e censuras alternados, alardeando o seu papel de árbitro imparcial que recorre ao VAR (os inquéritos de opinião e os resultados dos sufrágios).
A ilusão da co-governação depende da boa vontade e da paciência do primeiro-ministro, cuja frieza terá limites perante atitudes ou declarações na fronteira da ingerência na sua esfera de acção. Se Marcelo pretende alargar-se na explanação das suas ideias acerca de sectores-chave da governação, talvez fosse conveniente ponderar a renúncia ao cargo que exerce e tratar de candidatar-se a líder do PSD. Doutro modo, arrisca-se a criar na mente dos portugueses a ideia de que se dedica com indisfarçável deleite à arte de semear a dissensão, sem propósitos definidos (visto que não tem legitimidade democrática para impor os seus pontos de vista), em desfavor da estabilidade e apostando, para citar o seu correligionário Cavaco Silva, em “querelas inúteis”.
Imagem:Manuel de Almeida / Lusa