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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

A HISTORIADORA, A FARSA E A TRAGÉDIA

Julho 09, 2019

J.J. Faria Santos

 

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Estabelecer “quotas para deputados coloridos” de forma a tornar a Assembleia da República mais representativa da sociedade portuguesa, escreveu a historiadora Maria de Fátima Bonifácio no Público de sábado passado, não é viável. As mulheres, esclarece ela, partilham “as mesmas crenças religiosas e os mesmos valores morais: fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade. Ora isto não se aplica a africanos nem a ciganos”. Estes últimos, decreta do alto da sua sapiência, “são inassimiláveis”; quanto aos primeiros, “auto-excluem-se (…) da comunidade nacional (,,,), são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios e detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou ‘nacionalidades rivais’”.

 

Dado o seu ofício, poderia ter-nos brindado com uma breve resenha histórica com alusões às raízes bíblicas do racismo, à tese de Platão de que uns povos nasceram para ser livres e outros para experimentarem a escravidão ou ainda à proibição de casamento entre patrícios e plebeus na Roma Antiga. Claro que se o fizesse talvez não pudesse ignorar que o período de difusão do cristianismo, defensor da igualdade racial, terá facilitado as ligações entre os diversos povos, o que não contribuiria para a sua tese do muro civilizacional. Como defender a priori a exclusão em nome de uma doutrina que postula o acolhimento?

 

Por outro lado, seria de esperar que alguém com pergaminhos académicos se abstivesse de fazer generalizações primárias e abusivas em tom panfletário. Um espaço público de debate talvez não lhe mereça os cuidados que dispensa às publicações validadas pela sua casta, mas a compreensível ausência de notas de rodapé não pode ser substituída por afirmações genéricas que aspiram a ser argumentos de autoridade ou conclusões frívolas baseadas em observações empíricas à la carte. A insigne historiadora que satiriza a criação de um “observatório do racismo”, imaginando o processo de monitorização da discriminação “a partir de gabinetes almofadados onde se sentariam os observadores”, apresenta como amostra representativa da sua conclusão de que os africanos se detestam uns aos outros o testemunho de uma “empregada negra” do seu prédio.

 

Tenho o hábito de ler os artigos de Maria de Fátima Bonifácio editados pelo Público, porque apesar de invariavelmente discordar dos seus argumentos não exerço nas escolhas que faço enquanto leitor um veto com base em preconceitos ideológicos ou discriminações de qualquer espécie. A historiadora poderia ter optado, a bem de um debate equilibrado e salutar, por discutir as limitações da integração ou do multiculturalismo ou, se assim o entendesse, a imprescindibilidade da assimilação ou a sua impossibilidade no caso das “minorias exóticas”. Ao escolher o território do radicalismo argumentativo e ao, no mínimo, acolher no seu texto considerandos de teor racista e xenófobo, desqualificou o seu contributo para um debate relevante em favor de tiradas polémicas que lhe garantirão, seguramente, os likes de gente pouco recomendável. Eis um mérito que não lhe gabo.

 

Bonifácio faz alusões ao que chama “farsa multicultural”. Considerando que se pode designar por farsa um acto pouco sério, uma mentira ou uma ilusão, a historiadora parece ter invertido com a sua diatribe um célebre postulado de Marx, calcorreando ela própria a passadeira vermelha da farsa em direcção à tragédia pessoal do descrédito e, sobretudo, da desumanidade.

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