A ESQUERDA CONTROLA A COMUNICAÇÃO SOCIAL?
Junho 14, 2020
J.J. Faria Santos
Até parece que estamos na Coreia do Norte, na Rússia ou na Venezuela. “O Governo é hoje o grande timoneiro da comunicação social, isto é, o mais feroz condicionamento da liberdade de expressão (…) Os noticiários das televisões parecem feitos nos gabinetes dos ministros”, escreveu o cronista António Barreto em Dezembro do ano passado no Público, naquele seu estilo apocalíptico que pretende fazer passar por lucidez indesmentível um entranhado desencanto. E acrescentou: “(,,,) existe uma espécie de ambiente geral, de clima cultural ou de moda e espírito sempre disponíveis para agradar à esquerda, calar os defeitos, inventar conveniências e fabricar verdades, mas sobretudo condicionar e definir agendas”. Como se vê, faltou pouco para agitar o espantalho do “marxismo cultural”… E faltou, também, como elemento do coro, o estilo gongórico e barroco de um Paulo Rangel a denunciar a “asfixia democrática”.
Num artigo em que se queixava do excesso de exposição a notícias que se debruçavam sobre “ridículas campanhas anti-racistas”, e lamentava que permanecesse “quase oculto” o “miserável estado” do SNS, parece ter escapado a Barreto a existência de órgãos de comunicação social e jornalistas de créditos firmados e reputações sólidas, incapazes de compactuarem com as condições por ele enumeradas num cenário de condicionamento da liberdade de imprensa. A verdade é que a formulação de António Barreto corresponde a uma análise enviesada que determinados sectores da sociedade portuguesa pretendem que seja indiscutível. E cria uma amálgama que gera injustiças e atinge a própria credibilidade de quem a promove. É verosímil, por exemplo, a ideia de um jornal como o Expresso, dirigido por um João Vieira Pereira insuspeito de simpatias pela esquerda, “inventar conveniências e fabricar verdades”? E estão a ver o José Gomes Ferreira na SIC ou na SIC Notícias a fazer as suas análises de forma a “calar os defeitos” e a “agradar à esquerda”?
Volta e meia, o assunto da independência da comunicação social e a sua relação com os meios financeiros indispensáveis à sua subsistência regressa à ordem do dia, como ainda sucedeu recentemente com os apoios definidos pelo Governo. A pretexto de critérios sempre discutíveis e de procedimentos atabalhoados, lá vem a suspeita de simpatias ou da futura cobrança de favores. Critérios editoriais são encarados como “censura”, e jornalistas com uma imagem pública de assertividade e com um pendor sensacionalista pespegam no peito a medalha dos injustiçados.
A televisão, dado o seu imediatismo e o seu impacto, é a arena por excelência das disputas ideológicas. Tendo em conta a importância do comentário político televisivo para a formação das opiniões, o MediaLAB do ISCTE-IUL apresentou no ano transacto um estudo que “analisou 16 programas televisivos, entre o dia 1 de Março e o dia 1 de Abril de 2019, que continham 53 espaços semanais ‘fixos’ de opinião ou debate político ocupados por comentadores ‘residentes’”. O trabalho de análise realizado pelos investigadores Paulo Couraceiro, Gustavo Cardoso, Ana Pinto Martinho e João Sousa permitiu verificar que entre os comentadores “conotados politicamente, existe uma primazia, ligeira mas existente, de comentadores de direita (55%)”. Dos 53 espaços de opinião, 17 correspondiam a “espaços de comentário de ‘assinatura´”, ou seja, os seus protagonistas discorriam livremente, sem estarem sujeitos ao contraditório (para além das questões introduzidas pelo jornalista), sendo que nesta circunstância “a vantagem da direita aumenta (69%)”. Numa análise por estação, conclui-se que a SIC Notícias dedica “igual número de espaços à esquerda e à direita”, ao passo que na TVI24 a direita “começa a ganhar terreno face à esquerda”, “vantagem que se acentua “na CMTV (71% para 29%)”. A TVI e a SIC “desequilibram os números a favor da opinião de direita, uma vez que não têm comentadores políticos de esquerda em espaços de opinião ‘fixos’”.
Os autores do estudo têm o cuidado de frisar (e muito bem) que “a análise política à esquerda ou a direita não significam necessariamente um apelo ao voto em determinado partido, nem tão pouco um apoio partidário manifesto”. Na actualidade, por exemplo, permanecem em antena, em horário nobre, o ex-líder do PSD, Marques Mendes, e o ex-líder do PP, Paulo Portas. Será possível que do alto dos seus púlpitos, com acesso a fontes privilegiadas, com conhecimento próprio da área da comunicação social, permaneçam cegos e surdos, coniventes com o abastardamento da missão do jornalismo que Barreto antevê sob a forma do “condicionamento da liberdade de expressão”?
António Barreto terminava o seu artigo no Público com um lamento: “É pena que não haja oposição. Nem de direita, nem de esquerda”. Curiosamente, mais de cinco meses depois, Rui Rio abordava o tema ao seu estilo inimitável: apesar de para o Governo ser “mais simpático dar dinheiro à comunicação social”, porque precisa dela para “passar a sua mensagem”, explicou Rio, “as empresas de comunicação social são empresas iguais às que fabricam sapatos. Se têm uma dificuldade, devem ter os apoios que existem para todas as empresas.” A verdade, digo eu, é que não existem dados objectivos que permitam afirmar que os mass media, como alguns sapatos, apertem os calos à direita e reservem o conforto para a esquerda.
Imagem: mag.sapo.pt