A EPIDEMIA É UM ESPELHO
Março 09, 2020
J.J. Faria Santos
“As epidemias são o tipo de doença que parece erguer um espelho em frente dos seres humanos para nos mostrar quem realmente somos”, declarou Frank M. Snowden, professor universitário de História e História da Medicina, em entrevista à New Yorker. Claro que Snowden esclareceu que a imagem que o espelho devolve não reflecte apenas “o lado negro da humanidade”, mas também o seu “lado heróico”, considerando um bom exemplo o desempenho dos Médicos Sem Fronteiras na crise do Ébola.
Já Susan Sontag notava no seu ensaio A Sida e as Suas Metáforas que “as ideologias políticas autoritárias têm um manifesto interesse em promover o medo, um sentimento de iminência de tomada do poder por elementos estranhos – e para tal as doenças reais constituem um material muito útil”, acrescentando que “as doenças epidémicas abrem as portas aos apelos à proibição da entrada de estrangeiros, de imigrantes”. Na mesma obra, Sontag dá o exemplo da sífilis (epidemia que se espalhou pela Europa no final do século XV), para evidenciar a necessidade “de atribuir uma origem estrangeira às doenças mais temíveis. Os ingleses chamam-lhe a ‘varíola francesa’ (…); para os Parisienses era o morbus Germanicus; o mal de Nápoles, para os Florentinos; doença chinesa, para os Japoneses”. Nada original, portanto, no facto de um canal de informação português se referir à covid-19 como o “vírus chinês”.
O que fazer com o medo, então? Como responder aos desafios sociais que o coronavírus nos coloca? Aplicar aos nossos receios uma dose generosa de racionalidade e seguir os conselhos das autoridades (respeitar a etiqueta respiratória, lavar as mãos com frequência, evitar contacto próximo com pessoas com infecção respiratória). E ter a noção, citando o José Saramago do Ensaio Sobre a Cegueira, de que “as respostas não vêm sempre que são precisas, e mesmo sucede muitas vezes que ter de ficar simplesmente à espera delas é a única resposta possível”. Mas não tenhamos medo das palavras. “Distanciamento social” é simplesmente criar um espaço de resguardo que minimize o risco de contágio. O distanciamento efectivo não tem de implicar um distanciamento afectivo. Muito menos um curto-circuito na nossa humanidade.