A CULPA É DA VONTADE
Abril 03, 2021
J.J. Faria Santos
A culpa é da vontade. Da volúpia da política, do gosto pela afirmação do seu poder (que a dessacralização disfarça), da insaciabilidade do ímpeto de cenarização em que a glosada inteligência é viciada. A tal ponto que torpedeia o constitucionalista, que se vê forçado a contorcionismos do género “o direito é que serve a política e não é a política que serve o direito”. A suprema ironia é que entretido a esticar os limites do semipresidencialismo, invadindo disfarçada ou ostensivamente as competências governamentais, Marcelo vê-se agora, a propósito da promulgação das leis que violarão a norma-travão da Constituição, na posição de ser ultrapassado pelo primeiro-ministro na tarefa irrevogável de “cumprir e fazer cumprir” a dita Constituição.
Marcelo apostou na popularidade da decisão (no sítio da Presidência a nota sobre o assunto tem o título: “O Presidente da República promulga medidas de apoio social urgentes”), justificando-a com um conjunto de argumentos dignos de um equilibrista em matrimónio com o relativismo à medida do seu superior entendimento. Teve como resultado a suave ironia do primeiro-ministro (mensagem “rica”, “inovadora”, “muito criativa”), acompanhada de uma forte opção pelo recurso à fiscalização sucessiva para evitar um precedente, bem como a condenação de um rol de reputados constitucionalistas (do tom mais suave de Jorge Miranda, que tem as “maiores dúvidas” sobre a promulgação, até à assertiva afirmação de Vital Moreira de que “ num Estado-de-direito constitucional vale o primado da Constituição, pelo que não pode haver decisão política à margem da mesma, por mais meritória que se apresente, sobretudo se provinda do órgão que tem por missão a defesa da Constituição”.
Mas nada há a temer. O controlo de danos já começou. O jornal do regime já publicitou o entendimento do Presidente de que a “recuperação do país implica viabilizar os dois próximos orçamentos” (depois de uma afronta ao Governo, um afago), um conselheiro do Estado já fez a interpretação autêntica das suas palavras e o próprio, a pretexto da passagem dos 45º aniversário da Constituição da República Portuguesa, recordou a “honra de ter participado nessa votação” e na sua “elaboração”. Podemos estar descansados. Até é possível estabelecer um paralelo com a celebração da Páscoa. Grosso modo, ao terceiro dia o constitucionalista “ressuscitou”. Esteve brevemente ausente numa espécie de faroeste constitucional, mas a culpa foi da vontade. É caso para dizer que quando o Presidente não tem juízo (ou o sacrifica às suas inclinações pessoais, ao prazer lúdico de tentar condicionar Costa), a Constituição é que paga.
Imagem: jornaleconomico.sapo.pt