A ARTE DA SALVAÇÃO
Junho 29, 2020
J.J. Faria Santos
Apesar de se tratar de uma evidência desmentida quase todos os dias, persistimos na presunção de conhecer o grau de felicidade dos outros. Fiamo-nos nas convenções sociais, nos sorrisos abertos, nos “tudo bem” estereotipados que trocamos com uma leveza que se aproxima da futilidade. Não é sequer por mal. É uma forma de exorcizarmos os nossos próprios fantasmas, como se a proximidade da tristeza ou do desgosto nos contaminasse, como um vírus que nenhuma máscara conseguisse deter. Por outro lado, ao trocarmos juras de bem-estar (pronunciadas com energia e convicção) julgamos criar uma espécie de imunidade de grupo. Armados com estes códigos de leitura, tratamos de os aplicar aos amigos e aos conhecidos, mas também às figuras públicas que admiramos ou toleramos. E quando o comportamento ou as acções de alguém destoam deste cenário de bem-aventurança, ficamos estupefactos e mergulhamos na incompreensão. Como foi possível? Como é que ninguém se apercebeu? A quem imputar a falha no discernimento do risco? Até nos podemos sentir traídos por quem, intuímos, escolheu abandonar-nos. Esquecemos, claro, os insondáveis desígnios da alma humana e o íntimo e oculto desespero que a pode enegrecer, e que torna essa “escolha” o resultado de um dilema dilacerante.
A Arte já nos dá tanto (por exemplo, fruição estética e ferramentas para a compreensão do mundo ou para a construção da nossa identidade) que seria manifestamente exagerado que lhe exigíssemos que assumisse o papel de salva-vidas. E os seus protagonistas, no fundo os veículos que a conduzem até nós, confrontam-se, também eles, com os imponderáveis da natureza humana, quer esteja em causa um actor atormentado pela auto-estima em falência ou uma diva do canto confrontada com um terrível diagnóstico médico. Mesmo assim, Amália clamava que os musicais de Fred Astaire lhe salvaram a vida. Invadida pelo temor de um tumor, hospedou-se num hotel em Nova Iorque, pediu um equipamento de vídeo e cassetes dos filmes de Astaire e a crença de que “ia morrer”, ou de que se “ia matar”, foi substituída pela vontade de resistir e viver. A arte da salvação consistiu na salvação pela Arte.
Vivemos tempos desafiantes e terríveis na sua complexidade e incerteza. Tempos em que, por razões profilácticas, e citando Lauren Slater num texto escrito para a Time, a imposição da utilização da máscara por causa do SARS-CoV-2 resultou no facto de “metade do rosto humano ter sido erradicado por este vírus, ficando visíveis apenas os olhos”. Tempos em que “privados da intimidade e da simples amizade, estamos todos em risco”. E se em alturas de plena normalidade falhamos na percepção (e no debelar) dos dramas dos que nos são mais próximos ou mais queridos, como poderemos ajudar em plena era do distanciamento físico? Teremos que reinventar as condições de proximidade. E fazer um esforço de eloquência para que o poder da palavra possa mitigar a ausência da proximidade e do toque. Mesmo que nos digam, como no clássico do cancioneiro americano que Amália Rodrigues cantou (The Nearness of You):“It’s not the pale moon that excites me / That thrills and delights me, oh no / It’s just the nearness of you”. (Qualquer coisa como: “Não é a Lua pálida que me excita / Que me emociona e delicia, oh não / É somente a tua proximidade”.)
Imagens: Obras de David Ligare (wikiart.org)