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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

A ALGAZARRA DO CULPADO

Setembro 10, 2023

J.J. Faria Santos

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Se “o clima é de guerra fria”, o culpado mora em Belém. Quem é que alimentou, dias a fio e despropositadamente, o cenário da dissolução do Parlamento? Quem se arrogou o direito de sugerir/exigir a demissão de um ministro e, não satisfeita a pretensão, passou a retaliar com comunicados ásperos a anunciar a promulgação ou o veto das leis? Quem é que se atreveu a “ameaçar” uma ministra, caso não cumprisse “a taxa de execução dos fundos europeus”? Quem é que apelidou o Governo de “maioria requentada e cansada”? Quem é que alimenta, através das “fontes de Belém”, o semanário do regime, tecendo considerações acerca de cenários de governabilidade e de construção de alternativas à direita? Quem é que usa o Conselho de Estado como arma de arremesso político? Quem é que pretende esticar a sua capacidade de influência até ao limite da ingerência? Quem é que pretende chamar a si, de maneira informal, poderes legislativos?

 

O Presidente da República é a maior ameaça ao regular funcionamento das instituições democráticas. É preciso impor limites aos bullies. O primeiro-ministro sempre tratou Marcelo de uma forma institucionalmente (e até pessoalmente) irrepreensível, como, aliás, tinha tratado Cavaco, a quem chegou a convidar para presidir a um Conselho de Ministros. Qualquer cedência adicional a Marcelo transformaria Costa num primeiro-ministro sob tutela e colocaria o seu Governo ao sabor dos caprichos e dos tiques autoritários do Presidente. Não será por acaso que Daniel Oliveira, à esquerda, afirmou que “Marcelo está a transformar-se num Presidente de facção”; e que Francisco Mendes da Silva, à direita, a propósito dos protocandidatos às Presidenciais de 2026, tenha escrito no Público que “o grande objectivo de quem quer ser Presidente da República é só esse mesmo: ser Presidente da República. Não é a oposição ao Governo, não é a promoção de uma agenda para o país, não é a reconfiguração do espectro partidário nem a reinterpretação dos poderes presidenciais”.

 

O Expresso diz que Marcelo tenciona evitar o confronto total, e o próprio, em declarações na Feira do Livro do Porto, relembrou a amizade que o une ao primeiro-ministro, afirmando que “as amizades não de deixam cair. São importantes na vida”. A questão é se o próprio Marcelo não se deixará cair em tentação, porque como versejou Natália Correia (citada por António Valdemar na Revista do citado periódico): “o Marcelo neste mapa / a brincar aos cowboys não há nenhum. / passa rasteira: o mais subtil derrapa; / dá ao gatilho da intriga e faz: pum-pum.” Se Costa, nesta matéria, pode invocar o silêncio do inocente, Marcelo não tem como escapar à algazarra do culpado.

 

Foto: Nuno Veiga/Lusa (expresso.pt)

O EDITOR DE POLÍTICA DA REPÚBLICA PORTUGUESA

Julho 30, 2023

J.J. Faria Santos

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Marcelo Rebelo de Sousa é o editor de política da República Portuguesa. Apõe em cada promulgação de diploma, ou devolução sem promulgação, a sua nota de editor, que não se limita a alinhavar argumentos de carácter jurídico e/ou constitucional. Na verdade, o Presidente debruça-se sobre a matéria de facto, torpedeando a separação de poderes com uma leveza pouco institucional e com o peso de um ressentimento pouco católico que se abeira da vendeta.

 

Mal comparado, é como se o Presidente fosse o editor de um renomado escritor e fizesse questão de assinar um prefácio à obra onde constasse qualquer coisa como isto: trata-se de um romance polifónico de grande fôlego, com uma estrutura narrativa inovadora e uma riqueza estilística assinalável, porém, frustra as expectativas do leitor. A mulher do protagonista morre inesperadamente a meio da história num acidente de viação, contém personagens demasiado esquemáticos e o virtuosismo do autor não impede (ou não se preocupa com) o facto de, por vezes, ser difícil perceber quem é o narrador. No caso do acidente, o autor poderia ter colocado a vítima nos cuidados intensivos ou, porque não, optar pela preservação criogénica do corpo, deixando em aberto uma futura “ressurreição”. Não se deve encerrar, para sempre, o processo que no fundo é viver.

 

Não cessa de me causar espanto que destacados socialistas se tenham entusiasmado com o primeiro mandato de Marcelo. Que António Costa, com o seu agudo pragmatismo, tenha optado por apoiar a reeleição é compreensível. Extrapolar a partir daí um cenário de cooperação sem mácula, sobretudo depois de Marcelo ter sido desagradavelmente surpreendido com uma maioria absoluta, é de uma ingenuidade estratosférica, ainda para mais sopesando o caráter sinuoso do pensamento e da práxis marcelista. A carreira política de Marcelo é, na melhor das hipóteses, uma sucessão de jogadas lúdicas, ora inconsequentes ora de impacto passageiro e, na pior das hipóteses, uma miscelânea de irrequietude, disrupção e deslealdade. A presidência não é a cereja no topo do bolo porque não existe bolo. Mas como career move não deixa de ser notável.

 

Pacheco Pereira diz que ele está a enveredar por “um caminho perigoso”, que está a “contragovernar”, numa acção em que a hostilidade declarada se aproxima da vingança, com o intuito final de levar Costa a demitir-se; João Miguel Tavares diz que ele “estica os seus poderes constitucionais”; Vital Moreira acusa-o de “instrumentalizar o Conselho de Estado”, fazendo notar que “o Governo só responde politicamente perante o parlamento, não perante o PR, muito menos perante o seu órgão consultivo.”  Criticado à esquerda e à direita, Marcelo está onde sempre quis estar: nos braços do povo e da popularidade, preenchendo as noites brancas com a leitura fina dos estudos de opinião, cofiando o queixo imberbe em frente ao seu reflexo e indagando: espelho meu, existe alguém mais popular do que eu?

 

Imagem: presidencia.pt

O SUPREMO INFLUENCIADOR DA NAÇÃO

Junho 04, 2023

J.J. Faria Santos

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Quando o supremo influenciador da nação, agora também auto-investido na função de vigilante, faz questão de afirmar que “os serviços de informações são do Estado, não são de um Governo” está a falar claro? Evidentemente que não. Se possui informação que comprova o uso indevido dos serviços de segurança por parte do Executivo, não lhe resta alternativa senão demiti-lo. Se não é esse o caso, a afirmação produzida limita-se, pela sua extemporaneidade, a instalar uma suspeita, pelo que se enquadra no estilo sinuoso de fazer política que é património inalienável do Professor Marcelo desde os tempos de jornalista.

 

Neste novo ciclo, em que pretende conjugar o grau de influência de uma Kim Kardashian West com a vigilância activa da Securitas, no que se afigura ser um acto retaliatório (se Galamba tivesse sido demitido a vigilância seria mais frouxa ou nem sequer existiria?), Marcelo pretende usar as suas armas de eleição, que se dividem entre aparições institucionais com recados entre o jocoso e o sibilino, investidas estudadamente espontâneas na rua para conviver com a populaça e com os jornalistas e, por fim, o fluxo mais ou menos torrencial de informação off  the record para a comunicação social, ao mesmo tempo que assevera, com cara de póquer, que “é o único porta-voz da Presidência”.

 

Nos intervalos das cogitações produzidas em catadupa pelo seu cérebro prodigioso, da exploração da sua inesgotável criatividade e da análise sensorial e intelectual do sentir do povo português (basicamente analisando afincadamente os estudos de opinião), o Presidente persistirá nas intervenções a propósito de tudo e de nada, com recados, avisos, intimações e, quiçá, intimidações, como se tutelasse o Governo. Da cooperação à influência e da influência ao condicionamento, parece ter sido o caminho.

 

O homem que uma vez disse, em entrevista ao Expresso, que “coabitar com uma maioria parlamentar absoluta de orientação política oposta é para um Chefe de Estado quase um sonho, em semipresidencialismo”, percebe agora que não vai ter direito a sonhos cor-de-rosa. O primeiro-ministro não tem vocação para vassalo e a indulgência termina quando a ingerência bate à porta.

 

Imagem: José Sena Goulão/Lusa (24.sapo.pt)

ERA UMA VEZ UM "ALIADO"

Maio 07, 2023

J.J. Faria Santos

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Era uma vez um “aliado” que disse que “não faz sentido falar periodicamente de dissolução” do Parlamento e que, no entanto, em menos de quatro meses falou dela pelo menos 10 vezes.

 

Era uma vez um “aliado” que, depois de ter dito ao primeiro-ministro que “não será politicamente fácil que essa cara que venceu de forma incontestável e notável as eleições possa ser substituída por outra a meio do caminho”, tem insinuado com frequência que esse caminho pode ser interrompido.

 

Era uma vez um “aliado” que disse à ministra da Coesão Territorial Ana Abrunhosa: “Super infeliz para si será o dia em que eu descubra que a taxa de execução dos fundos europeus não é aquela que eu acho que deve ser. Nesse caso não lhe perdoo. Espero que esse dia não chegue, mas estarei atento para o caso de chegar.”

 

Era uma vez um “aliado” que na tomada de posse deste Governo assegurou que continuaria "vigiando distrações, adiamentos, autocontemplações e deslumbramentos” e que agora promete estar “mais atento e interveniente no dia-a-dia”. Esteve vigilante, mas não suficientemente atento?

 

Era uma vez um “aliado” que, citando Pacheco Pereira (Público -  27.01.2018), foi “comentador conhecido pelo seu cinismo, propensão para a intriga e mesmo ajuste de contas nas antipatias próprias” e se transformou num Presidente que “não se coíbe de usar as armas dos políticos populistas modernos, feitos pela televisão, para cultivar uma ‘proximidade’ cujo sucesso é sempre ser ‘contra’ alguma coisa”.

 

Era uma vez um “aliado” que, a pretexto de se pronunciar sobre determinada lei, anunciou que o Executivo tinha “falta de credibilidade” e inspirava pouca confiança.

 

Era uma vez um “aliado” cujas prioridades, em tempo de guerra na Europa e com uma inflação persistente a ameaçar o poder de compra das famílias,   incluem a análise e teorização sobre sondagens: se o PS cair para 26% ou 27%,  se o PSD subir para 35% ou 36%, então talvez se pudesse gerar uma alternativa com a IL e o CDS .

 

Era uma vez um “aliado” que pouco depois de ter jurado que “temas sensíveis” não são para “tratar na praça pública”, fazia chegar à comunicação social que não se contentaria com menos do que a demissão de um ministro.

 

Era uma vez um “aliado” que em vez de um tratamento em plano de igualdade pretendia subserviência, que em vez de cooperação solicitava vassalagem, que à lealdade e à frontalidade preferia a dissimulação, que à concertação entre poderes privilegiava a concentração de poderes sob a sua tutela.

 

Era uma vez um “aliado” que asseverou que não contassem com ele “para criar conflitos, nem deixar crescer tentativas para enfraquecer a função presidencial” imediatamente a seguir a tentar enfraquecer o mandato do primeiro-ministro, imiscuindo-se na prerrogativa deste de nomear e demitir os membros do seu Governo.

 

Era uma vez um “aliado” que diz ser “o último fusível de segurança política” do sistema constitucional, e que devido a uma sobrecarga de prepotência causada pela alimentação em excesso do ego se arrisca a provocar um incêndio político enquanto sorve um gelado.

 

Imagem: Rui Gaudencio/Público

TAP(E) SE NÃO QUISER VER

Abril 08, 2023

J.J. Faria Santos

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Quando, com candura e sentido pedagógico, a CEO da TAP explica ao “querido Hugo”(secretário de Estado em pânico que uma frase hostil de Marcelo ponha “o país contra “ o Governo) que é garantido que o favor se torne público, e que isso não será bom para ninguém, parece estar a exibir um sólido bom senso. Mas onde estava essa qualidade quando utilizava o motorista para deslocações pessoais? Ou quando não viu inconveniente em contratar uma amiga pessoal e companheira do personal trainer do marido? Ou ainda quando não anteviu qualquer estorvo ético no facto de o seu marido, Floyd Murray Widener, director de desenvolvimento comercial de uma empresa que comercializa software, abordar a TAP com uma proposta neste âmbito?

 

Quando o intrépido Hugo explica que um ”incómodo” é um pequeno preço a pagar pelo “apoio” do Presidente da República , explicando que o “aliado político” (um delírio de ingenuidade) se pode transformar num “pesadelo”, tecendo considerações políticas num email de serviço com um pedido ilegítimo, entramos no domínio da falta de sentido de Estado e de respeito pelos procedimentos e formalidades. Belém desmentiu ter pedido qualquer alteração no voo da TAP, tendo o cuidado de acrescentar que “se tal aconteceu terá sido por iniciativa da agência de viagens”. Como não foi a primeira vez que tal aconteceu, é caso para dizer que a agência de viagens é despropositadamente proactiva. Hugo Mendes receava o “pesadelo”; o que motivará o afã da agência?

 

Quando deputados do PS e assessores do Governo se reúnem com Christine Ourmières-Widener na véspera de uma audição parlamentar, brada aos céus a inépcia política, a incapacidade de antecipar que a presença da CEO da TAP nestas circunstâncias levantaria a suspeita de concertação de posições. Como é evidente, despedida com “justa causa”, Ourmières-Widener está apostada em “reparar a honra”. Os danos reputacionais são incalculáveis, presume-se. A ideia de que a CEO da TAP não contestaria o despedimento era absurda, mas não deixa de ser notável que ela tenha dito: “Ter dois ministros a demitir-me com justa causa está a arruinar a minha reputação, perante a minha família, os meus filhos e amigos.” Ou seja, o dano na vida íntima e privada parece ter sido infinitamente superior ao dano profissional.

 

Quando o complexo industrial mediático, escudado no sacrossanto critério editorial, manifesta uma acérrima hostilidade ao Governo (não, não é um escrutínio implacável, não é a função de vigilante da democracia que está em causa, é o tom gratuitamente acintoso, o alinhar propositado de notícias para sublinhar uma alegada escalada de degenerescência, misturando factos relevantes com banalidades), quando partidos políticos pedem demissões em série de ministros, quando alguém alude a acontecimento “patológicos”, o que está em jogo é a pressão sobre Marcelo para que dissolva a Assembleia da República. O PR, através do seu órgão oficioso, informou o país de que se “recusa a visitar mais obras do PRR com Costa”, mas como, segundo a jornalista Ângela Silva, acha que “a maioria dos portugueses não quer crises políticas nem conflitos institucionais” vai optar por utilizar “o poder da palavra e a ameaça de vetar diplomas”.

 

Apesar do clima de contestação e da virulência do combate político, a fazer fé no artigo de Ângela Silva para o Expresso, o Presidente acha que Costa tem a seu favor “um quadro orçamental extraordinário”, “a bazuca europeia”, uma “oposição com pouco norte” e “um instinto político raro”. Desgostoso com a opção de Montenegro de não “esclarecer o que quer do Chega”, o PR prefere, para já, aguardar que “o desgaste do ciclo” se concretize. “Só é preciso que a oposição ajude”, terá dito. Até lá, será ele, Marcelo, a liderar  a oposição. Como se dissesse num email para o líder do PSD: Caro Luís,  compreendo que isto seja um incómodo, mas enquanto não decides o que fazer com o Ventura, tenho de agir como aliado político da oposição e transformar-me no pior pesadelo do Governo. :)

 

Imagem: Carlos M. Almeida (Lusa)

TUDO EM TODO O LADO AO MESMO TEMPO

Março 12, 2023

J.J. Faria Santos

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Quase ao bater do minuto 50, em resposta a António José Teixeira, o Presidente balbuciou: “Pois é. Mas eu, eu, eu não me sigo, eu não, não me defino por sondagens.” Que os dois entrevistadores tenham mantido alguma circunspecção e não tenham desatado às gargalhadas é uma demonstração do seu profissionalismo. O Presidente que não se “define” por sondagens tinha minutos antes explicado que existe uma alternativa “aritmeticamente”, mas não “politicamente”, porque “a maioria das sondagens” mostra uma percentagem de votos nos partidos de direita e centro-direita superior aos da esquerda, mas isso resulta numa “alternativa fraca de liderança” devido ao facto de o “partido mais importante daquela área não ter o dobro do somatório dos outros dois”. Da última vez que o PR “não se definiu” por sondagens, anteviu uma votação fragmentada e acabou surpreendido por um empate técnico que resultou em maioria absoluta.

 

Pois é, os portugueses preferiram “uma maioria requentada”, “uma maioria cansada” à pujança do rioísmo suportado pelo impulsivo e dinâmico Ventura, e o resultado foi uma “legislatura um pouco patológica”, em que “durante seis meses, presidentes e primeiros-ministros trataram da guerra”. Olha que maçada, a guerra a obrigar-nos a tratar do imediato e a adiar os grandes desígnios de médio e longo prazo. Marcelo disparou em todas as direcções: contra um primeiro-ministro que “olha para o lado cheio do copo” (no seu olhar de geometria variável o “optimismo irritante” de Costa é tão pernicioso quanto o “pessimismo” de Passos); contra uma oposição “fraca na liderança”; contra incertos (as grandes cadeias alimentares?), em relação aos quais “se fica com a sensação de que há um aproveitamento” que se reflecte na inflação; contra a Igreja Católica, que “foi uma desilusão” na reacção às denúncias da comissão independente.

 

Confesso que olho com cepticismo para declarações como as de Sérgio Sousa Pinto no Expresso (Marcelo como “aliado político do Governo”) e as de Luís Paixão Martins ao Público (“O Presidente tem uma relação especial com o dr. António Costa, por não conseguir ter uma relação normal com a sua família política.”) A razão é muito simples: o Presidente só é aliado dele próprio. E depois de ter alimentado as expectativas mediáticas sucessivamente com Montenegro, Moedas e Passos, o grande objectivo da sua Presidência, a seguir a manter e se possível elevar os seus níveis de popularidade, é “restabelecer” a relação com o seu partido e conduzi-lo ao poder. Para tal não bastarão escaramuças e demissões no Governo ou um “panorama desgraçado do ponto de vista da execução do PRR”. Talvez uma “desgraçada situação económica e social do país” lhe sirva para invocar estar em causa o regular funcionamento das instituições democráticas, mas tal conjuntura poderia implicar também um golpe na sua taxa de popularidade. Um dilema. Às vezes, neste mundo, acontecem coisas “que são do outro mundo”, o que deve constituir um desafio estimulante para quem tem vocação para futurologista e encenador, aprecia golpes de teatro e estima “repensar a realidade”.

 

A grande missão que Marcelo tomou como sua é exigir, aos outros,  tudo em todo o lado ao mesmo tempo. No seu papel de comentador emérito, e Presidente nas horas vagas, paira etereamente sobre os comezinhos limites da realidade. Ele inspira, os outros que transpirem.

NOTAS SOBRE A CRISE

Janeiro 08, 2023

J.J. Faria Santos

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Menos de um ano depois de dois milhões e trezentos mil eleitores terem ditado a vitória com maioria absoluta do PS nas eleições legislativas,  a crer nos protagonistas políticos e nas fontes luminosas que jorram para os jornais, o cenário actual é o seguinte: “um clima de dissolução ética”, um Presidente a fazer um ultimato sob a forma de um prazo de um ano para “salvar a legislatura”, um primeiro-ministro ora cansado ora indiferente, ora arrogante ora com medo do pedro-nunismo, o partido que suporta o Governo à beira da balcanização e o principal partido da oposição a convocar de urgência o Conselho Estratégico para tentar reverter o atestado de inutilidade que sucessivamente lhe têm passado.

 

É difícil perceber se a sucessão de casos, diferentes entre si, com implicações e gravidade distintas, como sempre tratados de forma amalgamada para potenciar o efeito de avalancha, se deveram à displicência, à inconsciência ou à soberba. Percebe-se mal que quem, como António Costa, tem fama de controlar tudo o que se passa no Governo se tenha deixado arrastar para esta sucessão de microrremodelações, a ponto de se ter colocado a extravagante hipótese da dissolução da AR.

 

A amplitude do descalabro é de monta, mas não necessariamente irreversível, e não pode ser julgado pela sôfrega cobertura jornalística e pelo discurso indignado e profusamente adjectivado dos comentadores. O insuspeito Pacheco Pereira, assinalando “os erros e asneiras consideráveis”  do Governo, escreveu no Público (edição de 31/12/2022): “Sejamos justos, há algum exagero, e uma ecologia venenosa de crítica à governação, sem paralelo nas últimas décadas, que vem mais da nova comunicação social da direita do que dos partidos da oposição que vão a reboque (…) Os media encontraram com facilidade razões para (…) conduzirem uma campanha de alcateia, nuns casos com razão, noutros sem razão nenhuma, mas o efeito de desgaste é o mesmo.”

 

Não tenho António Barreto como um acérrimo cultor da ironia. E também não o tenho na conta de ingénuo. Por isso, como interpretar o seu desconcertante artigo no Público de ontem, onde lamenta que estejam “toldadas as boas relações entre Marcelo e Costa”? Reparem neste extracto: “…desde sempre Marcelo Rebelo de Sousa decidiu utilizar o seu cargo para apoiar o Governo e o Parlamento. (…) Fê-lo sem reservas mentais, nem armadilhas. A ponto de ser corrente dizer que o Presidente apoia demais o Governo, em vez de o vigiar ou compensar!” Barreto, que defende que um presidente não é eleito para “vigiar, sabotar, contrapesar ou fiscalizar”, escreveu também, lá mais para o fim do seu artigo, que Marcelo “poderia ter incomodado o Governo e o PS, para ajudar o seu antigo partido, para simpatizar com a direita (sua origem política) e para favorecer novos agentes políticos. Não o fez. Por bondade ou circunstância, por necessidade ou dever. A verdade é que não o fez.”

 

Portanto, um Presidente omnipresente nos media, que se dedica com afinco a comentar todos os assuntos correntes da governação, que forçou a demissão de ministros e de secretários de Estado (umas vezes com sucesso, outras não tanto), actuando sempre no limite da ingerência, “decidiu utilizar o seu cargo para apoiar o Governo”. Concluamos então, partindo das palavras de Barreto que acima destaquei, que o Presidente não terá “favorecido” o PSD porque é uma autêntica Madre Teresa de Calcutá; porque demitir um Governo com maioria absoluta menos de um ano depois de ter tomado posse, sem motivo de força maior, é um absurdo; porque, como próprio admitiu, “não é certo que surgisse uma alternativa evidente e forte”; e ainda porque ele é, de novo citando as suas cristalinas palavras, “de uma estabilidade institucional total”.

ALTA PRESSÃO - A VIDA COSTA!

Novembro 20, 2022

J.J. Faria Santos


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“Ai, Costa, a vida Costa!” era o bordão da série Malucos do Riso, programa de humor que consistia, basicamente, na encenação de anedotas. António Costa, jornalista, disse na CNN Portugal, a propósito do livro baseado em entrevistas ao ex-governador Carlos Costa, que este “é hoje um homem isolado e utilizado pela direita, nomeadamente o PSD”, para uma luta política com o PS. A coisa foi tão ostensiva e tão pouco subtil que levou a jornalista São José Almeida a considerar que “a sessão do lançamento do livro se transformou num comício do PSD”. Desde a tomada de posse de Carlos Moedas que a direita não saía em peso à rua (com a notória ausência de Paulo Portas, que não morre de amores pelo ex-governador). O “comentador” Marques Mendes liderou a sessão de propaganda, desafiando (pressionando?) o Ministério Público a abrir uma investigação criminal à venda do BANIF, por alegado “abuso de poder” e “favorecimento” do Santander. Carlos Costa, em entrevista ao mesmo canal, lamentou a ausência dos seus amigos de esquerda, facto que “desequilibrou a audiência”, seguramente uma deplorável falha na mise-en-scène.

 

Segundo o relato do Expresso, o tom e o conteúdo da intervenção de Marques Mendes foi interpretado por parte dos presentes como “o embrião de um programa de candidatura” presidencial. Mendes terá usado a táctica do 2 em 1- champô e endurecedor: limpou e branqueou o desempenho do ex-governador e endureceu a crítica ao primeiro-ministro em funções. A narrativa da direita foi abalada por declarações como as de António Lobo Xavier e, sobretudo, pela intervenção do Presidente da República, sublinhando que, em relação ao BPI, o interesse nacional foi salvaguardado e Isabel dos Santos afastada, tudo na decorrência de um processo em que se conjugaram decisões financeiras com considerandos políticos e ponderações acerca das relações entre Estados, no qual o próprio governador esteve envolvido.

 

Um detentor de um alto cargo que não saiba lidar com pressões não possui qualificações para o desempenhar. E ainda menos se encarar a sua área de actuação como região demarcada, imune a circunstâncias políticas, financeiras ou diplomáticas. Uma coisa é preservar a independência da instituição que dirige, outra muito diferente é encarar cada diligência ou contributo externo como uma ingerência intolerável. Apregoa uma das teses acerca das motivações para a elaboração deste livro que o objectivo de Carlos Costa seria o de ajustar contas com Mário Centeno. Com a narrativa das pressões, e com o takeover da sessão de lançamento orquestrado pela ala passista do PSD, o ex-governador conseguiu a proeza de ser peão de uma manobra política, provocar o rememorar do balanço entre o pouco abonatório e o desastroso dos seus mandatos e recolher os remoques e o desinteresse dos banqueiros. Na conferência “A banca do futuro”, organizada pelo Jornal de Negócios, o CEO do BPI, João Pedro Oliveira e Costa, comentou: “Já houve comissões de inquérito, já houve pessoas que não tomaram Memofante, devemos passar à frente, a história está contada no sentido em que os bancos estão bem.”

MARCELO AMEAÇA MINISTRA

Novembro 06, 2022

J.J. Faria Santos

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Estamos habituados aos “recados”, aos “avisos” e às “recomendações” do Presidente da República. Desta vez, tendo em conta a formulação e o tom, aqui e ali suavizados por um esboço de sorriso equívoco, não será exagerada a palavra ameaça. Marcelo dirigiu-se à ministra Ana Abrunhosa nestes termos: “Este é um dia superfeliz, mas há dias superinfelizes. E verdadeiramente superinfeliz para si será o dia em que eu descubra que a taxa de execução dos fundos europeus não é aquela que eu acho que deve ser. Nesse caso não lhe perdoo. Espero que esse dia não chegue, mas estarei atento para o caso de chegar”. Entre o paternalismo, a infantilização e a  ilusão da co-governação, o Presidente teve uma tirada “superinfeliz”.

 

Da última vez que reli o artigo 133º da Constituição da República Portuguesa, não constavam do rol das competências do PR relativamente a outros órgãos a sindicância e a avaliação do desempenho dos membros do Governo. Afirmações deste calibre não se coadunam com a noção comum de cooperação institucional, nem sequer com o conceito fluido de “magistratura de influência”, na exacta medida em que se afastam do simples grau de exigência que deve orientar qualquer exercício de funções públicas para se aproximarem da advertência grosseira dissimulada por uma linguagem infantil.

 

O Presidente está mal-acostumado. Em tempos, logrou antecipar-se à demissão aprazada da ministra Constança Urbano de Sousa e aparecer em público como o indutor do seu despedimento do Governo. É certo que, depois, fracassou quando tentou forçar a demissão de Eduardo Cabrita, mas não perde uma oportunidade para tentar extravasar os limites do seu poder. Agora, penalizado pela sua verborreia e pela presunção da omnipresença e da omnisciência, grita aos setes ventos que não vai ficar enclausurado no palácio, algo que nunca ninguém esperou ou sugeriu. Que porfie, pois. Que intervenha, que se desloque pelo país, que quase arranque o braço ao Paddy Cosgrave ou que avise ou ameace ministros. Não espere é uma qualquer espécie de imunidade face aos juízos de valor dos cidadãos. Até lhe podemos perdoar, mas continuaremos a cobrar-lhe os dias em que for “superinfeliz”.

O MOMENTO HORRIBILIS DE MARCELO E O MOMENTO TONY BLAIR DE COSTA

Outubro 16, 2022

J.J. Faria Santos

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Pontos comuns à monarquia inglesa e à República Portuguesa? Bom, a rainha inglesa declarou 1992 o seu annus horribilis e a imprensa portuguesa diz que em Outubro de 2022 ocorreu o momento horribilis  de Marcelo. E se Carlos III recebeu Liz Truss entre o desdenhoso e o enfadado (“Back again? Dear oh dear. Anyway,,,”), a maioria dos portugueses, quando assiste à enésima intervenção diária do seu Presidente, deve desabafar: “Outra vez? Que inadiável comunicação informal ao país o Presidente nos impinge agora?”.

 

Passando por cima da questão de saber até que ponto a condição de católico condiciona o desempenho do seu mandato, a verdade é que as suas declarações a desvalorizar a dimensão dos casos de abusos sexuais denunciados em Portugal dentro da Igreja Católica foram lamentáveis. O que se seguiu foi uma manobra pouco hábil de controlo de danos, culminando num relutante pedido de desculpas (centrado mais na susceptibilidade das vítimas do que na insensibilidade ou na irrazoabilidade das suas afirmações), o que levanta a suspeita de que, citando Helena Pereira em artigo no Público, “a total impunidade ou arrogância de quem está há muito tempo no poder, e que o Presidente já criticou a propósito do Governo, se instalou também em Belém”. 

  

Adoptando o modo bravata (o que é capaz de ficar bem ao Comandante Supremo das Forças Armadas), Marcelo asseverou ao Expresso: “Não pensem que me vou fechar no Palácio”. Ninguém o pediu, nem ninguém espera que adira a um voto de silêncio em contexto monástico. E prometeu continuar o seu caminho, “exactamente como sempre foi, sem mudar uma vírgula nos valores, nos princípios, na determinação…”. Já os fins serão mais flexíveis ou mutáveis. A confirmar a sua natureza, diz-nos o Expresso que na quarta-feira à noite foi testar a sua popularidade num trajecto que incluiu Lisboa e Cascais. Parece que os resultados da sondagem PR/Portugália/Santini foram satisfatórios, dado que “o povo ter-se-á mantido afectuoso”.

 

Regressando ao paralelismo entre a monarquia inglesa e a República Portuguesa, Ana Sá Lopes escreveu no Público que há quem tenha visto na vigorosa solidariedade do primeiro-ministro para com o Presidente uma variante por parte de António Costa do “momento Tony Blair no dia da morte da princesa Diana”, ou seja, perante um chefe de Estado debilitado e acossado por uma gaffe monumental, o líder do Governo aparece como referencial de estabilidade e bom senso. Curiosamente, o secretário-geral do PS, em reunião com os deputados do seu partido, explicou aos seus atentos interlocutores que o PS dever ser um “referencial de tranquilidade” e que tal não é compaginável com “andar a correr de um lado para o outro, fazer 30 declarações por dia, e dizer uma coisa num dia e outra noutro”. Ring a bell?

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