O MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO DOS EUROS
Julho 28, 2024
J.J. Faria Santos
A grande marca dos primeiros 100 dias de um governo que promete ser reformista é a satisfação das reivindicações das corporações. Depois de ter bradado que as contas públicas estavam em “bastante pior” estado do que o anunciado, com despesa sem cabimentação orçamental, e de se ter queixado do impacto na receita da legislação aprovada pela oposição, só pode ter ocorrido o milagre da multiplicação dos euros. Doutra forma seríamos forçados a concluir da irresponsabilidade, da pulsão suicida ou de uma estratégia deliberada de ganhos políticos e eleitorais, chutando para o futuro as consequências da degradação financeira do país.
Se há área onde existiu continuidade em relação ao executivo anterior é o da estratégia de comunicação. Na edição de 11 de Julho, o jornal Público assinalava “285 páginas e 13 PowerPoints em 100 dias”, acrescentando que “das 285 páginas de anúncios, apenas seis propostas de lei chegaram ao Parlamento e há vários pacotes que não se comprometem com metas temporais, como o do combate à corrupção”. Não vai assim tão longe o tempo em que Luís Montenegro acusava o então primeiro-ministro, António Costa, de só apresentar “PowerPoints dos objectivos” sem os concretizar, e anteriormente já tinha sentenciado que “a propaganda política é o princípio e o fim do Governo do Partido Socialista”.
Na era das percepções criou-se o mito do governo dinâmico. Minimizadas as apropriações manhosas e pouco subtis de medidas do executivo anterior, desvalorizados os faux pas (das exigências da ministra da Saúde ao organismo errado até ao anúncio equivocado em entrevista ao Financial Times do ministro das Finanças), o que sobra é a bravata de primeiro-ministro que insiste em governar como se tivesse maioria absoluta. “Não irão conseguir impedir o Governo de governar”, exclamou o homem que evita falar, seguindo o conselho do seu mental coach Cavaco Silva ou sendo vítima da “falta de rede” (problema comum em zonas rurais). Amparado por um Presidente urbano-impressivo, o primeiro-ministro está convencido de que todos se dobrarão à sua vontade. Satisfeitas as corporações, gozando do estado de graça, com um Presidente subitamente avesso à palavra dissolução e com o líder da oposição a precisar de tempo para se consolidar como alternativa, Montenegro sente que é capaz de galgar o hiato entre os seus 78 deputados (mais 2 do CDS-PP) e os 116. O problema das percepções é que podem ser enganadoras e frequentemente volúveis. E o sentimento pode oscilar entre a consciência, o desejo e o mero palpite.
Imagem: portugal.gov.pt