Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

A HONRA PERDIDA DE MÁRIO MACHADO

Setembro 24, 2023

J.J. Faria Santos

miguel a lopes_lusa_m_machado.jpg

O cidadão fez parte de um grupo que se dedicou com afinco à “caça de pretos no Bairro Alto” como forma de comemorar o “Dia da Raça”. Sequestrou, espancou e torturou pessoas de forma metódica e selvática. Ameaçou “cortar a cabeça” a Daniel Oliveira e afirmou que os políticos só reconheceriam o direito dos nacionalistas a terem voz quando começassem a ser “pendurados no Terreiro do Paço”. Tentou extorquir a uma ex-companheira de movimento 30 000€ sob a ameaça de morte a cumprir diante dos filhos. Ameaçou uma magistrada. Mostrou-se preparado para a “luta armada” em nome do ideário nacionalista. O cidadão é uma das principais figuras do movimento neonazi em Portugal. O cidadão Mário Machado, licenciado em Direito pela Universidade Autónoma, viu o Ministério Público pedir a condenação do activista Mamadou Ba por o ter difamado. Porque, no dizer da procuradora: “Não se pode dizer que os condenados e as pessoas que estiveram presas não têm direito à honra”.

 

O senso comum define a honra como um conjunto de qualidades morais e acções que conferem ao seu protagonista respeitabilidade. Honestidade, rectidão, noção de dever, civismo, são algumas dessas qualidades. Quem infringe reiteradamente e de forma violenta os princípios e as regras da vida em sociedade desfere um golpe fatal na sua reputação. O respeito das normas vigentes é imperativo, mesmo quando não se concorda com elas, pelo que abster-se de perturbar a paz social e trabalhar para as modificar dentro da legalidade, se for o caso, é a única via.

 

Em artigo publicado no Diário de Notícias, em Junho deste ano, as jornalistas Fernanda Câncio e Valentina Marcelino divulgaram extractos de um acórdão do Juízo Central Criminal de Lisboa onde o arguido Mário Machado era condenado pelo “crime de incitamento ao ódio e à violência”. O colectivo de juízas destacou o facto de o arguido “não ter mostrado qualquer arrependimento nem demonstrado assunção da responsabilidade pelos seus atos, nem qualquer empatia com as vítimas deste tipo de crimes". Escreveram ainda as jornalistas: “A decisão fala até de persistente energia criminosa’, da violação das ‘regras básicas da vida em sociedade de forma exuberante’, de ‘insensibilidade’ e de não se estar perante atos únicos mas do ‘culminar de um processo longo de exercício continuado de extremismo xenófobo, pela humilhação e pelo uso da violência’”.

 

Esta não é uma história de queda e redenção. De descida aos infernos e de expiação. Este é um relato de motivações racistas, xenófobas, antidemocráticas e de apologia da violência. Não tem direito ao bom nome o homem mau que defende abertamente o extermínio de seus concidadãos. A honra perdida de Mário Machado é insusceptível de ser recuperada.

 

Foto: Miguel A. Lopes/Lusa

O ESTEVES JÁ NÃO ESTÁ

Setembro 17, 2023

J.J. Faria Santos

1841292.jpg

É possível que a melhor chave para a compreensão do caso Lemos Esteves esteja nesta declaração que Pacheco Pereira fez ao Público: “Parto do princípio de que uma pessoa que é professor de Direito sabe o que é crime e que a Universidade de Lisboa não contrata pessoas para dar aulas que não estejam em pleno uso das suas faculdades”. A sugestão de que aquele que foi catalogado por Marcelo Rebelo de Sousa de “génio do comentário político” e que alegou estar a ser perseguido pelo SIS possa estar no limite da sanidade mental pode ser mais do que um artifício de retórica.

 

“Comentador político desde os 14 anos”, colaborou num blogue do Expresso e com o jornal Sol, onde em Janeiro de 2020 qualificava Donald Trump como “o melhor amigo da LIBERDADE e da democracia”, antes de se embrenhar numa espiral conspiracionista, que inclui sites de propaganda e de desinformação, e que culminou num descabelado ataque a Pacheco Pereira, em artigo pejado de mentiras, o que lhe valeu uma acusação de calúnia e o forçou a admitir o recurso a “fontes falsas” e a comprometer-se  a pagar uma indemnização de 10 000 €.

 

Consta que Lemos Esteves idolatrava Marcelo, o qual, segundo testemunhos na rede X (ex-Twitter) tanto o “promovia como humilhava”, tendo chegado a referir-se a ele como “aquele assistente com ar cadavérico”. Assistente universitário e blogger de jornal de referência, é admissível que, jovem e impressionável, se tenha sentido a caminho do topo do mundo e que a frustração das expectativas o tenha levado a enveredar por uma frenética actividade conspiratória onde se sentiria validado pelos excêntricos e ressentidos pares. E não é de descartar que a militância numa realidade virtual alternativa se tivesse misturado com uma espécie de delírio de grandeza. Que tivesse arrolado como testemunhas de defesa no processo que Pacheco Pereira lhe moveu Marcelo e o director do Sol ainda se pode perceber, mas como interpretar a presença na lista de nomes como o ex-director da CIA Mike Pompeo ou Donald Trump?

 

Não é claro se o homem que à Visão revelou ter recebido “a visita de um ‘enviado da Presidência do Conselho de Ministros’ na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, para negociar uma ‘vida tranquila’ em troca do meu silêncio sobre a atividade da Rússia, da China e do Irão no Portugal de Costa… se não, sofreria consequências” continua a dar aulas. Ao Público, instigado a explicar como irá dar “máxima publicidade” ao desmentido das falsidades que escreveu, o jurista desabafou: “Já não escrevo, eu agora não escrevo.” Como se se lamentasse, à la Bocage: “Já Lemos Esteves não sou!...À cova escura / Meu estro vai parar desfeito em vento…” Foi-se a inspiração e só restou a conspiração.

 

Foto: Matilde Fieschi (publico.pt)

A ALGAZARRA DO CULPADO

Setembro 10, 2023

J.J. Faria Santos

nuno_veiga_mar_costa.jpeg

Se “o clima é de guerra fria”, o culpado mora em Belém. Quem é que alimentou, dias a fio e despropositadamente, o cenário da dissolução do Parlamento? Quem se arrogou o direito de sugerir/exigir a demissão de um ministro e, não satisfeita a pretensão, passou a retaliar com comunicados ásperos a anunciar a promulgação ou o veto das leis? Quem é que se atreveu a “ameaçar” uma ministra, caso não cumprisse “a taxa de execução dos fundos europeus”? Quem é que apelidou o Governo de “maioria requentada e cansada”? Quem é que alimenta, através das “fontes de Belém”, o semanário do regime, tecendo considerações acerca de cenários de governabilidade e de construção de alternativas à direita? Quem é que usa o Conselho de Estado como arma de arremesso político? Quem é que pretende esticar a sua capacidade de influência até ao limite da ingerência? Quem é que pretende chamar a si, de maneira informal, poderes legislativos?

 

O Presidente da República é a maior ameaça ao regular funcionamento das instituições democráticas. É preciso impor limites aos bullies. O primeiro-ministro sempre tratou Marcelo de uma forma institucionalmente (e até pessoalmente) irrepreensível, como, aliás, tinha tratado Cavaco, a quem chegou a convidar para presidir a um Conselho de Ministros. Qualquer cedência adicional a Marcelo transformaria Costa num primeiro-ministro sob tutela e colocaria o seu Governo ao sabor dos caprichos e dos tiques autoritários do Presidente. Não será por acaso que Daniel Oliveira, à esquerda, afirmou que “Marcelo está a transformar-se num Presidente de facção”; e que Francisco Mendes da Silva, à direita, a propósito dos protocandidatos às Presidenciais de 2026, tenha escrito no Público que “o grande objectivo de quem quer ser Presidente da República é só esse mesmo: ser Presidente da República. Não é a oposição ao Governo, não é a promoção de uma agenda para o país, não é a reconfiguração do espectro partidário nem a reinterpretação dos poderes presidenciais”.

 

O Expresso diz que Marcelo tenciona evitar o confronto total, e o próprio, em declarações na Feira do Livro do Porto, relembrou a amizade que o une ao primeiro-ministro, afirmando que “as amizades não de deixam cair. São importantes na vida”. A questão é se o próprio Marcelo não se deixará cair em tentação, porque como versejou Natália Correia (citada por António Valdemar na Revista do citado periódico): “o Marcelo neste mapa / a brincar aos cowboys não há nenhum. / passa rasteira: o mais subtil derrapa; / dá ao gatilho da intriga e faz: pum-pum.” Se Costa, nesta matéria, pode invocar o silêncio do inocente, Marcelo não tem como escapar à algazarra do culpado.

 

Foto: Nuno Veiga/Lusa (expresso.pt)

O VICE-COMENTADOR-EM-CHEFE A CAMINHO DE BELÉM?

Setembro 03, 2023

J.J. Faria Santos

mm_young_1975.jpeg

Após décadas de carreira política seguidas de largos anos de carreira política continuada por outros meios (audiovisuais), seguindo o template do actual PR, Marques Mendes anunciou em horário nobre a sua pré-candidatura à Presidência da República. A notícia foi de tal forma inesperada que um outro pré-candidato, Santana Lopes, comentou: “E como a pescada. Antes de ser já o era”.

 

Marques Mendes condiciona o seu avanço à utilidade do gesto. É possível que o próprio PSD ache mais útil o seu desempenho de comentador “independente”, tarefa durante a qual, e citando Miguel Sousa Tavares no Expresso, “teve sempre a cautela de nunca se afastar do partido quando não era conveniente e de fazer soar as trombetas da imprensa amiga para que notassem que discordava do partido quando tal era inócuo”. O herdeiro de Marcelo nas conversas em família em versão democrática (que agora se prepara para fazer nova habilitação de herdeiros com o foco em Belém) prosseguiu o legado, com menos humor e sofisticação (embora mantendo os gestos largos e uma vivacidade algo artificial), mas é justo reconhecer que inovou nas cachas jornalísticas. É certo que deu alguns passos em falso, mas nunca anunciou, ao contrário do actual inquilino de Belém, a morte de uma pessoa que insubordinadamente teimou em manter-se viva.

 

Em entrevista ao Observador em Agosto de 2016, o protocandidato descrevia-se como alguém “viciado em política”, assumia-se como um “animal político” e admitia que em 2024 pensaria em candidatar-se a PR (antecipou o calendário, talvez para marcar terreno). Interrogado acerca do início da sua carreira na comunicação social, no caso em funções governativas em que granjeou a fama de telefonar para a RTP e fazer o alinhamento dos Telejornais, respondeu nada ter a “confessar”, não sem antes ter afirmado: “Não vou dizer que nunca falei para a RTP. Agora, houve uma mudança grande. Seguramente que todos os governantes têm nesse domínio os seus pecados ou pecadilhos.”

 

Tal como Marcelo, Marques Mendes tem uma ligação ao mar - um é mais mergulhos e o outro era devoto do bodyboard -, mas falta-lhe gravitas, grandeza (não é piada) e, sobretudo, propósito. A política não pode ser só um vício nem se comprazer no anúncio de virtudes retóricas. Que grande desígnio para a nação, que projecto mobilizador, que capacidade de criar sinergias se poderá adivinhar na futura candidatura a Belém do vice-comentador-em-chefe?

 

Na resposta a um inquérito de Verão do Diário de Notícias em Agosto de 2014, quando questionado se ao ser fotografado por um paparazzo preferiria “aparecer na capa de frente ou de costas”, Marques Mendes respondeu: “Nu numa praia? Eu? Absolutamente impossível. Comigo o paparazzo não tem grande sucesso”. É provável que comentador vá nu e que lhe digam que ele vai engalanado com um sumptuoso atavio que só os inteligentes conseguem ver.

 

Imagem: Marques Mendes em 1975 (pormenor de foto publicada em observador.pt)

UM BEIJO EXTEMPORÂNEO E SEM SENTIDO

Agosto 27, 2023

J.J. Faria Santos

rubiales_hermoso.jpeg

Dezanove anos depois de Sepp Blatter ter sugerido que as mulheres deveriam jogar com calções mais curtos e justos, como no voleibol, em nome de uma “estética feminina”, e dez anos depois de o mesmo personagem se ter aventurado a avaliar a textura e a consistência do rabo de Hope Solo, guarda-redes da selecção americana, durante uma gala da FIFA, o “episódio” Rubiales-Hermoso parece demonstrar que prevalece na ideia de alguns dirigentes uma certa noção de futebol feminino algures entre a competição desportiva e o concurso de beleza. E tal como deveria exprimir o desejo de paz no mundo, a futebolista campeã deveria acolher com bonomia, êxtase mesmo, o beijo efusivo e o abraço apertado do presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, e encará-lo como um símbolo de validação e realização pessoal.

 

Luis Rubiales diz que o beijo com que presenteou Jenni Hermoso foi “espontâneo e consentido”. Na verdade, foi extemporâneo e sem sentido. Invasivo e desrespeitoso. Aonde nos levaria a tirania da espontaneidade, entendida como licença para dispor do corpo de outrem como receptor das nossas efusivas emoções? E “não foi um beijo, foi um beijinho”, acrescenta Rubiales. No fundo, alega que foi uma espécie de beijo técnico. Ao que chegámos: já não pode o homem tradicional exprimir afecto agarrando e beijando uma amiga subordinada ou, num momento de euforia e fervor patrótico, agarrar as partes íntimas na presença da rainha e da infanta? Salvem o macho ibérico, que está em vias de extinção, atacado pelas feministas woke furibundas e vítima da pusilanimidade do frouxo homem contemporâneo.

 

"Quero esclarecer que, como se viu nas imagens, em nenhum momento consenti no beijo que ele me deu e, claro, de forma alguma procurei levantar o presidente. Não tolero que a minha palavra seja posta em causa e muito menos que inventem palavras que eu não disse" declarou Jenni Hermoso. Como escreveu a jornalista Jill Filipovic num ensaio disponível no sítio da Internet da CNN, pondo em causa a validade da justificação do beijo como um acto espontâneo, “no calor do momento os homens não tendem espontaneamente a agarrar e a beijar outros homens. É como se existisse um direito a dispor dos corpos das mulheres, e a expectativa de que as mulheres tolerarão a invasão chocante do seu espaço pessoal, que não se aplica a eles.”

 

Foto: FIFA/edition.cnn.com

ESTAR PELOS AJUSTES

Agosto 20, 2023

J.J. Faria Santos

img_440x274$2023_08_14_21_41_44_458628.jpg

Quem disse que “as pessoas só acabam com os maus hábitos quando enfrentam choques"?  A mesma pessoa que em Maio de 2016, à Notícias Magazine, negava, peremptoriamente, interesse em liderar o PSD: ”Nem pensar.” E que 3 anos depois se referia a António Costa, para desagrado dos seus correligionários, nestes termos: “O primeiro-ministro conseguiu tornar-se de certa forma, por mérito seu, daquilo que fez e da credibilidade que criou, o líder dos socialistas europeus”. Na mesma ocasião, mostrou-se “fã do Presidente” e da sua “conexão sentimental e emocional com as pessoas que é extraordinária”, vislumbrando em Marcelo um “magnetismo único na política portuguesa”.

 

Em Setembro de 2016, numa homilia em que reflectiu acerca de uma leitura do Eclesiastes, o Papa Francisco afirmou: “Qual ganho tem o homem por toda a fadiga com a qual ele se preocupa? Ele está ansioso para aparecer, para fingir, pela aparência. Esta é a vaidade.” E, mais adiante, acrescentou: “A vaidade é como uma osteoporose da alma: os ossos do lado de fora parecem bons, mas por dentro estão todos estragados. A vaidade nos leva à fraude (…) Quantas pessoas conhecemos que parecem … ‘Mas que boa pessoa! Vai à missa todos os domingos. Faz grandes ofertas à Igreja’. Isto é o que se vê, mas a osteoporose é a corrupção que tem dentro.”

 

Seguramente que o empenho e a omnipresença do engenheiro Carlos Moedas na Jornada Mundial da Juventude se deveram ao seu compromisso inabalável com a cidade e com o país no sentido de projectar uma imagem de competência organizativa e simpatia generalizada, tudo a bem do tal “retorno” superior a meio milhão de euros. Para tal, contratou duas agências de comunicação, criou uma Unidade de Missão, mandou cartas aos munícipes, publicou vídeos nas redes sociais, caprichou nos ajustes directos, apareceu nos locais dos grandes eventos do Papa “com horas de antecedência”, fez questão de marcar presença junto de Marcelo (para se banhar do seu “magnetismo”) ao “mesmo nível do primeiro-ministro”, tendo mesmo, com grande pesar seu, certamente, tido “disputas de protocolo com o Governo”, no dizer do Expresso. Uma fonte socialista (ressabiada, claro) disse ao jornal: “Nunca vi um ateu tão beato”.

 

Com o Papa de regresso ao Vaticano, a bolha explodiu em elogios ao homem que se referiu à Jornada Mundial da Juventude, com modéstia e sentido das proporções, como “o evento das nossas vidas”. EScreveu o Expresso que o “telemóvel de Moedas entupiu com mensagens de elogio, como se tivesse acabado de vencer uma noite eleitoral”. Apetece recordar as palavras do Papa: “Hoje a grande tentação é contentar-se com um telemóvel e qualquer amigo. Embora seja isto o que muitos fazem e ainda que seja também o que te apetece fazer, isso não te fará feliz (…) Jesus não derruba os teus sonhos, mas corrige-os quanto ao modo de os realizar”.

 

Sete anos depois, o “nem pensar” de 2016, dito com firmeza em nome da harmonia familiar, parece deslaçar-se, e enquanto Luís Montenegro procura, por sua vez, banhar-se no “magnetismo” de Moedas, este parece preparar um ajuste directo ao PSD. O partido deve ter caído nos “maus hábitos”, estagna nas sondagens, não se vê livre do ex-militante Ventura e está a precisar de um choque “monetário”. O problema para Moedas é que, usando as expressões por ele proferidas na Semana do Empreendedorismo de Lisboa em 2022, ele está tão empenhado em ser o front office do PSD que corre o risco do overselling.

 

Foto: Luís Forra/Lusa

O CORNO

Agosto 13, 2023

J.J. Faria Santos

Stone_bull's_head_rhyton_archmus_Heraklion.jpg

Apelidar alguém de corno é um dos insultos predilectos das redes sociais. Pior do que ser corno, na sua beatífica e patética ignorância, é ser corno manso, conivente por omissão, paralisado pelo estupor de um amor traído que se recusa a abandonar o coração solitário caçador cujo território foi subitamente invadido por um predador furtivo. O risco de o corno se passar dos cornos é significativamente mais elevado no corno bravo, que pode muito bem (muito mal!) enfiar um murro nos cornos que a traidora (ou o traidor) não tem e metaforicamente lhe pôs. Nestas circunstâncias, a vingança serve-se quente e a ideia da represália entra-lhe de imediato na cornadura, pelo que o risco da materialização de uma tragédia é gritante. Por contraste absoluto, existe também o chamado corno ateu, criatura enganada, mas que, obnubilada pela fé na fidelidade da parceira (ou do parceiro), simplesmente não acredita em tal perfídia. Neste caso, é a ausência de fé que salva.

 

Por que razão corno é um insulto avassalador? Independentemente do chavão “ninguém é de ninguém” e da proliferação de relações de geometria variável, continua válida a ideia de que um relacionamento é regulado por uma espécie de “contrato” implícito, que rege o investimento emocional, com cláusulas com penalizações que visam assegurar um mínimo de segurança e estabilidade. Os contratos quebram-se, claro, mas o que é insuportável para o corno, talvez mais que o opróbrio público (cada vez mais público e em mais plataformas), é a cobardia do subterfúgio que o(a) traidor(a) usa para não ser apanhado(a), muitas vezes até com o piedoso intuito de não causar sofrimento ao encornado. O pior, o mais devastador, é o golpe contra o amor-próprio. É ser tratado como um produto, em risco de devolução depois da embalagem violada, por falta de qualidade ou aproximação do fim do prazo de validade.

 

O estatuto de corno pode ser, ao mesmo tempo, um violento ataque ao patriarcado, uma manifestação de empoderamento feminista e uma consequência do darwinismo amoroso. Em abono do corno, é importante que se diga que a sua condição não depende exclusivamente das suas competências enquanto sujeito afectivo ou da sua inteligência emocional. Como nos ensinou Amy Winehouse, o amor é um jogo de perdedores. E mesmo para os sortudos a winning streak pode ser interrompida. É que na mesa de jogo sentam-se, mais do que adversários concorrentes, criaturas complexificadas pela sua irredutível humanidade. Criaturas complexas e voláteis, portanto. O que num dia é um gosto rapidamente se transforma num desgosto. E numa dor de corno.

 

Foto: wikimedia commons/Jebulon

FRANCISCO SUPERSTAR

Agosto 06, 2023

J.J. Faria Santos

GI_Leonel_de_Castro.jpg

O espectáculo da fé em todo o seu esplendor, protagonizado pelo carismático Papa Francisco em modo pop star, estreou na Lisboa cosmopolita do eterno retorno.  Um octogenário debilitado que diz que Deus “não é um motor de busca” e que as redes sociais aproveitam dos jovens a sua “utilidade para pesquisas de mercado”, ao passo que a fama e o reconhecimento instantâneos são acção de um algoritmo, conduziu umas jornadas que ficarão marcadas pela sua afirmação veemente de que “na Igreja, há espaço para todos”. Uma afirmação de princípio, fulcral, mas que esbarra, bem sabemos, nos preconceitos e no conservadorismo do clericalismo.

 

Homens de fé, que exultaram com o anúncio da realização da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa (“esperávamos, desejámos, conseguimos”), e homens de pouca ou nenhuma fé, que, todavia, não hesitaram em carregar com a cruz da notoriedade, rejubilaram com aquilo que o semanário do regime já classificou de “sucesso, uma enorme festa popular, cheia de alegria, sonhos e apelos à paz” (uma candidata ao título de Miss Mundo não diria melhor…). Aliás, o Expresso destaca em manchete a “demonstração de força da Igreja”, como se se tratasse de um comeback, um regresso à luz depois de um período encerrada nas trevas, acossada pela tragédia dos abusos sexuais ignorados e aturdida pelas críticas do próprio Papa aos comportamentos pouco católicos.

 

No final, dirão todos que a festa foi bonita e, confrontados com a factura da organização, repetirão o mantra de Rui Moreira: “a alegria não tem valor”, no sentido de que seria um ultraje mencionar os profanos custos perante tão sublime ideal. O mesmo Rui Moreira que em Fevereiro afirmava, a propósito da JMJ, a sua “perplexidade quando um país vive destes eventos, destas festas, quando aqui e ali está a cair aos pedaços, como nos bairros sociais.” Há alegria no céu, também, com a conversão deste céptico.

 

Acabada a festa, a “demonstração de força da Igreja” ver-se-á reduzida a um estado de flacidez, confrontada de novo com a quotidiana negação dos seus fiéis em seguir à letra alguns dos seus preceitos, sobretudo os que se relacionam com a vida íntima e afectiva, e com as contradições insanáveis que a tolhem e desmentem todos os dias a noção generosa da Igreja aberta a todos.

 

Portugal é hoje um país com leis que regem a interrupção voluntária da gravidez e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e prepara a regulamentação da lei da eutanásia. A matriz laica prevalece. Dir-se-ia que a “sensibilidade” católica é permeável aos ensinamentos do Evangelho, mas pouco receptiva a aplicar na vida quotidiana certos ditames da hierarquia.  A ICAR e as suas instituições gozam de privilégios discutíveis (alguns incompreensíveis) e de capacidade de influência assinaláveis. Talvez se possa dizer, como defende Fernanda Câncio, que a “amálgama entre identidade nacional e católica continua a ser descarada e reverencialmente promovida por um Estado que nunca operou a vital separação face à religião ‘oficial’” (ainda para mais quando o Chefe de Estado é um praticante devoto), mas daí a diagnosticar “a agonia do Estado laico” (como escreveu Fernando Rosas) vai uma distância que só a retórica e a hipérbole consentem.

 

No querido mês de Agosto, o espectáculo da fé, a grande ópera católica, que mais que drama cantado ou pregação light foi, sobretudo, a exibição da alegria da adoração de um clube de fãs pelo seu ídolo, instalou-se como uma realidade alternativa. Amanhã, a vida retoma o seu fluxo normal.

 

Aqueles de entre os não-crentes que sentiram uma espécie de opressão pela exibição ostensiva (e intensiva) da fé, caindo até numa aguerrida e deslocada pose de resistência activa familiar do despeito, podem respirar de alívio. A fé também os salva a eles. Nesta circunstância, a ausência dela ou do seu testemunho em modo non-stop.

 

Foto: Leonel de Castro/Global Imagens

O EDITOR DE POLÍTICA DA REPÚBLICA PORTUGUESA

Julho 30, 2023

J.J. Faria Santos

presidenterepublicaportuguesa_marcelorebelodesousa

Marcelo Rebelo de Sousa é o editor de política da República Portuguesa. Apõe em cada promulgação de diploma, ou devolução sem promulgação, a sua nota de editor, que não se limita a alinhavar argumentos de carácter jurídico e/ou constitucional. Na verdade, o Presidente debruça-se sobre a matéria de facto, torpedeando a separação de poderes com uma leveza pouco institucional e com o peso de um ressentimento pouco católico que se abeira da vendeta.

 

Mal comparado, é como se o Presidente fosse o editor de um renomado escritor e fizesse questão de assinar um prefácio à obra onde constasse qualquer coisa como isto: trata-se de um romance polifónico de grande fôlego, com uma estrutura narrativa inovadora e uma riqueza estilística assinalável, porém, frustra as expectativas do leitor. A mulher do protagonista morre inesperadamente a meio da história num acidente de viação, contém personagens demasiado esquemáticos e o virtuosismo do autor não impede (ou não se preocupa com) o facto de, por vezes, ser difícil perceber quem é o narrador. No caso do acidente, o autor poderia ter colocado a vítima nos cuidados intensivos ou, porque não, optar pela preservação criogénica do corpo, deixando em aberto uma futura “ressurreição”. Não se deve encerrar, para sempre, o processo que no fundo é viver.

 

Não cessa de me causar espanto que destacados socialistas se tenham entusiasmado com o primeiro mandato de Marcelo. Que António Costa, com o seu agudo pragmatismo, tenha optado por apoiar a reeleição é compreensível. Extrapolar a partir daí um cenário de cooperação sem mácula, sobretudo depois de Marcelo ter sido desagradavelmente surpreendido com uma maioria absoluta, é de uma ingenuidade estratosférica, ainda para mais sopesando o caráter sinuoso do pensamento e da práxis marcelista. A carreira política de Marcelo é, na melhor das hipóteses, uma sucessão de jogadas lúdicas, ora inconsequentes ora de impacto passageiro e, na pior das hipóteses, uma miscelânea de irrequietude, disrupção e deslealdade. A presidência não é a cereja no topo do bolo porque não existe bolo. Mas como career move não deixa de ser notável.

 

Pacheco Pereira diz que ele está a enveredar por “um caminho perigoso”, que está a “contragovernar”, numa acção em que a hostilidade declarada se aproxima da vingança, com o intuito final de levar Costa a demitir-se; João Miguel Tavares diz que ele “estica os seus poderes constitucionais”; Vital Moreira acusa-o de “instrumentalizar o Conselho de Estado”, fazendo notar que “o Governo só responde politicamente perante o parlamento, não perante o PR, muito menos perante o seu órgão consultivo.”  Criticado à esquerda e à direita, Marcelo está onde sempre quis estar: nos braços do povo e da popularidade, preenchendo as noites brancas com a leitura fina dos estudos de opinião, cofiando o queixo imberbe em frente ao seu reflexo e indagando: espelho meu, existe alguém mais popular do que eu?

 

Imagem: presidencia.pt

CONSELHO DE ESTADO INTERRUPTUS

Julho 22, 2023

J.J. Faria Santos

image_CE.jpg

“É um Conselho de Estado para chatear o Governo”, declarou ao Expresso, em off, um conselheiro. Com este ponto único na ordem dos trabalhos, o Conselho de Estado convocado por um Presidente quiçá aditivado com fortimel não ofereceu conclusão robusta nem debate viril. Ao que parece, o primeiro-ministro teve de sair mais cedo para apanhar o avião para a Nova Zelândia e não fez qualquer intervenção, o que terá levado a que o Presidente prescindisse de falar no final da reunião. Marcelo terá sugerido que o debate prossiga em Setembro, razão pela qual é legítimo pressupor estarmos, formalmente, perante um Conselho de Estado interruptus.

 

Devo advertir os críticos da forma torrencial como Marcelo dispõe do uso da palavra que não se poderá depreender que, a partir de agora, sempre que o PM se abstiver de falar, o PR seguirá o exemplo. A política tem horror ao vazio e o vazio tem horror a Marcelo, e este ainda não descobriu outra forma de destilar o seu veneno em doses não letais senão através do seu prolixo verbo. E ainda bem. Doutra forma, veríamos em breve a imprensa de referência a clamar que Costa calara Marcelo.

 

Consta que a vedeta da reunião foi o barão do Norte Miguel Cadilhe, que esteve cerca de uma hora a demonstrar como os números positivos da economia podem ser enganadores. Seria de esperar que o douto economista não precisasse de tanto tempo para denunciar o ludíbrio, mas, enfim, nem toda a gente tem o talento para a síntese e a clareza do comentador “independente”- conselheiro Marques Mendes.

 

O Conselho de Estado interrompido não é um método aconselhável para o controlo da conflitualidade institucional. Mas também não é esse o objectivo da vigilância reforçada do Presidente ao que já chamou de “maioria requentada” (num exemplo de “elegância” discursiva). Marcelo deseja que a conjugação do descontentamento popular com a afirmação da oposição lhe possibilite a convocação de eleições antecipadas no rescaldo das eleições europeias. Se não é certo que as duas condições se verifiquem, um outra Costa, Ricardo Costa, aponta no Expresso um argumento que estraga o cenário: “A fé nas europeias não passa de uma candeia que tremeluz em 2024. Uma maioria absoluta não cai em eleições com abstenção de 69% de eleitores.”

 

Imagem: Miguel A. Lopes/Lusa

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2020
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2015
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2014
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2013
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2012
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2011
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub