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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

O MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO DOS EUROS

Julho 28, 2024

J.J. Faria Santos

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A grande marca dos primeiros 100 dias de um governo que promete ser reformista é a satisfação das reivindicações das corporações. Depois de ter bradado que as contas públicas estavam em “bastante pior” estado do que o anunciado, com despesa sem cabimentação orçamental, e de se ter queixado do impacto na receita da legislação aprovada pela oposição, só pode ter ocorrido o milagre da multiplicação dos euros. Doutra forma seríamos forçados a concluir da irresponsabilidade, da pulsão suicida ou de uma estratégia deliberada de ganhos políticos e eleitorais, chutando para o futuro as consequências da degradação financeira do país.

 

Se há área onde existiu continuidade em relação ao executivo anterior é o da estratégia de comunicação. Na edição de 11 de Julho, o jornal Público assinalava “285 páginas e 13 PowerPoints em 100 dias”, acrescentando que “das 285 páginas de anúncios, apenas seis propostas de lei chegaram ao Parlamento e há vários pacotes que não se comprometem com metas temporais, como o do combate à corrupção”. Não vai assim tão longe o tempo em que Luís Montenegro acusava o então primeiro-ministro, António Costa, de só apresentar “PowerPoints dos objectivos” sem os concretizar, e anteriormente já tinha sentenciado que “a propaganda política é o princípio e o fim do Governo do Partido Socialista”.

 

Na era das percepções criou-se o mito do governo dinâmico. Minimizadas as apropriações manhosas e pouco subtis de medidas do executivo anterior, desvalorizados os faux pas (das exigências da ministra da Saúde ao organismo errado até ao anúncio equivocado em entrevista ao Financial Times do ministro das Finanças), o que sobra é a bravata de primeiro-ministro que insiste em governar como se tivesse maioria absoluta. “Não irão conseguir impedir o Governo de governar”, exclamou o homem que evita falar, seguindo o conselho do seu mental coach Cavaco Silva ou sendo vítima da “falta de rede” (problema comum em zonas rurais). Amparado por um Presidente urbano-impressivo, o primeiro-ministro está convencido de que todos se dobrarão à sua vontade. Satisfeitas as corporações, gozando do estado de graça, com um Presidente subitamente avesso à palavra dissolução e com o líder da oposição a precisar de tempo para se consolidar como alternativa, Montenegro sente que é capaz de galgar o hiato entre os seus 78 deputados (mais 2 do CDS-PP) e os 116. O problema das percepções é que podem ser enganadoras e frequentemente volúveis. E o sentimento pode oscilar entre a consciência, o desejo e o mero palpite.

 

Imagem: portugal.gov.pt

UM CADASTRADO À PROVA DE BALA

Julho 21, 2024

J.J. Faria Santos

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In God we trust, escarrapacham os americanos nas notas de dólar. E podem confiar nos seus profetas e prosélitos? Onde acaba o interesse pessoal e começa o fervor pelo bem-estar comunitário e o desejo de expansão da fé e da vivência religiosa? Onde termina a genuína expressão da crença e começa a manipulação? Trump sentiu-se seguro após o silvo da bala lhe ter murmurado ameaças ao ouvido porque “tinha Deus a meu lado”. Homens de pouca fé logo trataram de censurar a negligência divina por não ter salvado o bombeiro que também fora atingido, mas podemos sempre supor que o  acesso à salvação se reja por uma espécie de numerus clausus: entre um meritório e compassivo soldado da paz e um candidato a Presidente que promete acabar com a guerra da Ucrânia num dia e reabilitar o sonho americano, quem é que Deus haveria de escolher?

 

A provável vitória de Trump anuncia o triunfo de uma autocracia com laivos de teocracia. Agora sim, vem aí a “carnificina americana”, despedaçando o Estado de direito, a separação de poderes e até os direitos individuais. A terra dos bravos ameaça transtornar o lar dos livres. “Todos os homens e mulheres esquecidos, que foram negligenciados, abandonados e deixados para trás, não serão esquecidos nunca mais”, prometeu o candidato em registo épico. Agora que provou ser feito da matéria dos mitos e dos predestinados, Trump insta os descamisados a não chorarem por ele, porque nunca os abandonará. Nada o deterá. O homem que se portou como um ditador sul-americano, do género dos que desprezam os resultados eleitorais e promovem sublevações sangrentas, milionário de cartoon com pose de wrestler, é agora o futuro do sonho americano. Um futuro em que a democracia americana corre o risco de se assemelhar ao WWE, isto é, uma espécie de campeonato de luta profissional, um entretenimento com protagonistas estilo Marvel, envolvidos em confrontos de resultado combinado. Poderá ser empolgante, para quem apreciar o estilo, mas já não será uma democracia plena.

A PRIMA-DONA CONTRA A CABALA

Julho 14, 2024

J.J. Faria Santos

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Esta prima-dona renega a popularidade, desdenha do “espalhafato” e despreza o “estrelato”. Confrontado, porém, o seu perfil esfíngico com afirmações “indecifráveis” e uma “campanha orquestrada”, eis que a sua recatada figura se materializou no horário nobre de um canal televisivo, numa entrevista para a qual manifestamente se preparou. O problema é que o guião que seguiu faria um “optimista irritante” parecer pessimista.

 

Na defesa acérrima do Ministério Público invocou procuradores competentes e especializados (“elevado nível técnico”), citou o “dever de averiguar” e rejeitou a existência de erros ou a necessidade de desculpas, ora porque todos as diligências são validadas por juízes, ora porque “um conjunto de pessoas entendeu que havia indícios relevantes”, ora ainda porque se vão “conhecendo elementos”. 3 arguidos detidos durante 22 dias e depois libertados pelo juiz? “Lamento que isso tenha acontecido”, disse, mas foi “excepcional”. Um político escutado ininterruptamente durante 4 anos? “Não é desejável nem comum”, mas as escutas foram autorizadas por magistrados judiciais, que certamente entenderam que era “muito relevante” que elas prosseguissem.

 

A entrevista foi uma tentativa de ajuste de contas com a actual ministra da Justiça (quem fez declarações “indecifráveis” e “graves”), com o Presidente da República (cuja acusação de maquiavelismo lhe causou “perplexidade e surpresa”) e com o ex-primeiro-ministro, que em vez de se demitir, “poderia continuar a exercer as suas funções”, seguindo o exemplo de Ursula von der Leyen ou Pedro Sánchez. E também com as pessoas que têm ou já tiveram “responsabilidades de relevo na vida da nação”, agora mancomunados numa “campanha orquestrada”.

 

Longe vai o tempo (2021) em que o então candidato único à presidência do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Adão Carvalho, afirmava: “Entendo que a atual Procuradora-Geral da República é distante dos magistrados, não os ouve e não os defende. (…) insistiu numa diretiva sobre os poderes hierárquicos que não foi objeto de discussão no seio do Ministério Público, que nenhum dos anteriores Procuradores-Gerais da República quis e que pode comprometer e vulnerabilizar o Ministério Público perante as tentativas externas de o manterem dentro de uma esfera de controlo, quando existem dezenas de investigações que envolvem pessoas relevantes do ponto de vista político, financeiro e económico.”

 

Agora, a PGR que diz que “não há um erro. Há uma investigação que conduzirá a uma arquivação se for esse o caso”. E defende: “os magistrados que têm a seu cargo estas investigações são de elevado nível técnico e custa-me a admitir a falta de prova”. Em resumo: dado que o Ministério Público não erra, as suas investigações não geram falta de prova, os seus funcionários são de alta craveira e as escutas ad aeternum têm o visto dos juízes, “algo obstará” a que se prescinda da “esfera de controlo” que os poderosos “em campanha” contra o MP almejam?

 

Lucília na Corporação das Maravilhas, especialista na concepção maculada de parágrafos, receosa de ser acusada de branqueamento de políticos, tomou a decisão “absolutamente excepcional [de] identificar publicamente um ‘suspeito/testemunha’ num inquérito” (Francisco Teixeira da Mota in Público). Pelo caminho torpedeou a separação de poderes e os equilíbrios do Estado de direito. Altiva e com tiques de arrogância, a PGR demonstrou que põe os seus interesses pessoais acima do bom nome dos cidadãos, e que não hesita em cavalgar o populismo em vez de praticar o rigor, a pedagogia e a estrita legalidade. Na visão maximalista e corporativista de Lucília Gago, o Ministério Público plenipotenciário é o filtro indispensável para uma acção política refém da corrupção e do tráfico de influências. No Outono, cai a folha e cai a Lucília. Seguir-se-á o/a procurador(a) do nosso contentamento? Entretanto, prosseguem os inquéritos à “influência” de Costa e à casa de Espinho de Montenegro. Se ainda não foram encerrados “é porque haverá algo a que tal obstará”. A PGR, mesmo que se esquive à imputação da intencionalidade de acções danosas, seguramente não escapará às acusações de inconsciência e irresponsabilidade.

O AGENTE EXEMPLAR E A CIDADÃ FURIBUNDA

Julho 07, 2024

J.J. Faria Santos

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Com deve actuar um agente exemplar perante um conflito entre uma cidadã e um motorista de autocarro? Se ela se recusar a ser identificada, há que imobilizá-la com firmeza, recorrendo a um mata-leão, sufocando-a e puxando-lhe o cabelo. Se necessário, que a cavalgue. Se for “um agente branco a algemar uma cidadã negra e a maioria das pessoas” nas redondezas for negra, não há que hesitar em recorrer à firme dissuasão: “levas um balázio” é uma expressão particularmente eficaz e recomendável perante gente que “não sabe as leis”. Adicionalmente, o agente exemplar deve seleccionar dois ou três destas testemunhas involuntárias e ordenar que as levem para a esquadra, onde seguindo rigorosos protocolos de comportamento e de legalidade, deve aplicar-lhes socos ou pontapés (menos agressivos ou potencialmente letais que o mata-leão – repare-se na salvaguarda da proporcionalidade), contribuindo para uma forte pedagogia de respeito pela autoridade e pela ordem, ao mesmo tempo que permite a descompressão do seu estado do tensão.  Quanto à cidadã furibunda, caso decida, como é comum nestes casos, atirar-se para o chão ou até sucumbir à cataplexia, donde pode resultar um “traumatismo cranioencefálico frontal” e uma “face deformada por hematomas extensos”, o recomendável é deixá-la sozinha, inanimada, no exterior da esquadra e chamar, compassivamente, os bombeiros.

 

A cidadã furibunda, incapaz de assegurar que a filha se munisse de um passe para poder utilizar um meio de transporte público, que “atemorizou o motorista” e “agrediu” e mordeu o agente exemplar, que utilizou uma “alopecia preexistente” para acusar este de lhe arrancar cabelo, e que “simulou um desfalecimento e ficou deitada no chão”, reclamou ter sido barbaramente agredida. Quando uma cidadã furibunda alega ter sido agredida por um agente exemplar com “socos na boca e na cara”, e insultada com expressões do género - “Grita agora, sua filha da puta, preta! Macacos, vocês são lixo, uma merda!” -, torna-se evidente, conforme jurisprudência sapientíssima do Tribunal de Sintra, que “se faz passar por vítima” para “obter uma choruda indemnização”, ao mesmo tempo que delega no “movimento anti-racista” o pagamento das despesas com a sua advogada. Trata-se, no fundo, como agora se diz, de monetizar a sua condição de pessoa racializada. O destempero, o descontrolo emocional, a agressividade, a falta de humildade e a arrogância de uma cidadã furibunda podem dar origem a uma análise equivocada que cai, como escreveu um reputado colunista no jornal Público, no “vício do racismo estrutural”, calamidade que só pode ser combatida com a sua integração no Plano Nacional para a Redução dos Comportamentos Aditivos e das Dependências.

 

Imagem: pormenor do jornal Público

O PIANISTA

Junho 30, 2024

J.J. Faria Santos

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Janelas estilhaçadas com vista para a natureza. Destroços no chão de um compartimento, onde a claridade se imiscui para desenhar sombras. No meio do retrato do caos, um militar das Forças Armadas ucranianas toca piano. Variações sobre a guerra. Só podemos imaginar se ele, num intervalo das trevas do combate, escolheu um nocturno melancólico para sublinhar o torpor de um soldado cansado da desumanidade, ou se, tomado por uma ânsia de oblívio, se lançou num scherzo vivaz, deslizando os dedos pelas teclas com a alegria tensa de quem tacteia a pele de um interesse amoroso. Tudo é precário neste cenário, tudo apela à incongruência, tudo parece desmentir a inesperada irrupção da beleza num palco de destruição.

 

E o piano estará afinado? As cordas sob tensão terão resistido às flutuações de temperatura, à humidade, à utilização mais ou menos intensiva e a esse fenomenal teste de stress que é um conflito bélico? Se escutar nos fosse permitido, obteríamos nitidez sonora e um timbre apurado? Neste interlúdio na cidade de Chasiv Yar, equipado com capacete e, porventura, colete à prova de bala, um homem de armas sentado ao piano desafia os deuses do Apocalipse. Que alguém no meio da barbárie, abstraindo-se do caos e da destruição, procure resgatar a voz de um piano ferido na sua imponência e no seu brilho, eis um sinal de que os ventos de guerra não dobram os espíritos indomáveis.

 

Imagem: Jornal Público

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A PROCURA ACTIVA DO CONHECIMENTO FORTUITO

Junho 23, 2024

J.J. Faria Santos

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A procuradora-geral da República, com aquela determinação, presteza,  sentido de responsabilidade e apego ao rigoroso cumprimento da legalidade que se lhe conhece, abriu um inquérito à violação do segredo de justiça, consubstanciada no acesso concedido à CNN Portugal de “todas as conversas  e detalhes que constam dos 21 volumes e 16 apensos da Operação Influencer”.

 

A origem deste rigoroso exclusivo Ministério Público/CNN Portugal/TVI, tendo em conta que, segundo o jornal Expresso, “os arguidos do processo, incluindo o ex-ministro João Galamba, estão há cinco meses sem fazer uma consulta actualizada aos autos e continuam sem ter acesso às gravações telefónicas de que foram alvo ao longo de quatro anos”, só pode ser assacada ao órgão titular da acção penal, o que lhe confere, objectivamente, o estatuto de fora-da-lei. Já não bastavam as escutas non-stop plurianuais, a guarda de escutas criminalmente irrelevantes à espera de melhor oportunidade, as ilações abstrusas e a presunção de culpabilidade da classe política.

 

Parece que o motivo pelo qual se mantêm escutas telefónicas sobre matérias estranhas a determinado processo se deve aos “conhecimentos fortuitos”, não relacionados, por conseguinte, com o que está a ser investigado, mas susceptíveis de originarem novos inquéritos. Eu diria que as escutas non-stop plurianuais configuram uma procura activa do conhecimento fortuito. Por outro lado, para o Supremo Tribunal, a jurisprudência prevalecente é a de que só se destroem escutas que digam respeito a segredos de Estado. O resto é para preservar, de forma a manter em sentido uma classe vista como propensa a controlar o poder judicial e a sucumbir às mordomias que a corrupção proporciona.

 

O mais recente desempenho do Ministério Público tem sido objecto de severas e merecidas críticas, com alusões a processos kafkianos,  julgamentos políticos, “vigilância própria de um estado policial”, “autonomia que ronda a arbitrariedade” e “violação das regras básicas do Estado de Direito Democrático, com envolvimento e participação de responsáveis dos sectores da justiça e da comunicação social”.

 

Lucília Gago justificou a existência de um certo parágrafo por uma “necessidade de transparência” (e por interpostas “fontes judiciais” fez questão de esclarecer que temia que o MP viesse a ser mais tarde acusado de proteger o primeiro-ministro). Aplicando o mesmo raciocínio, espero que o inquérito agora aberto à violação do segredo de justiça obedeça à celeridade das conclusões, bem como nas sanções que sejam de aplicar, e à transparência na sua comunicação. A “costumada justiça” já não nos serve. Doutra forma, perceberemos que a PGR só está preocupada em proteger o MP e, de caminho, com o seu irresponsável silêncio, assiste impávida à implosão do Estado de direito.

O ESPELHO NÃO REFLECTE O PERFIL

Junho 16, 2024

J.J. Faria Santos

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A revista Salus Magazine publicou a 7 de Março uma entrevista a Ana Paula Martins, desafiando-a a definir o perfil do próximo ministro da Saúde. A resposta foi: “alguém que olha para a evidência como uma fonte substantiva de apoio à decisão”, “que não se feche no gabinete”, “que apareça sem ser convidado e que surpreenda, que apoie quem está no terreno”. Em síntese: “um perfil de sabedoria, energia, e resistência”, ou seja, alguém com a perfeita noção do seu campo de acção, das tarefas delegadas nos organismos que superintende, consciente dos constrangimentos do SNS, pronta a colaborar com quem está “no terreno” e a avaliar as situações de forma rigorosa, com base na “evidência”.

 

3 episódios recentes revelaram que a agora titular do ministério enfrenta severas dificuldades para se encaixar no perfil que definiu. Em relação ao Plano de Contingência do Verão do SNS declarou-se surpreendida por ele ainda não existir e mostrou contrariedade pelo facto de a Direcção-Executiva não o ter preparado, para logo depois se perceber que tal tarefa era incumbência da Direcção-Geral de Saúde, cujo referencial orientador já tinha sido publicado, demonstrando assim desconhecimento em relação ao funcionamento do próprio ministério e leviandade na avaliação das responsabilidades da Direcção-Executiva.

 

Na Assembleia da República, a ministra declarou enfaticamente que há “lideranças fracas” nos hospitais portugueses. Mesmo que se louve o grau de exigência, para quem pretende a colaboração de quem está no “terreno” talvez fosse avisado analisar primeiro as condições de exercício do cargo em cada instituição (orçamento, número de profissionais disponíveis, tipo de morbilidades, etc.), antes de fazer proclamações genéricas susceptíveis de instalar um clima desestabilizador e potencialmente injusto. Que têm um efeito pernicioso adicional: é que para que a autoridade de quem comanda seja reconhecida pelos subordinados é indispensável que se sustente na lisura dos procedimentos e na clareza das instruções.

 

Por fim, a ministra socorreu-se dos dados que constam na página 26 do Plano de Emergência da Saúde, repetindo que o número de doentes oncológicos em lista de espera acima do Tempo Máximo de Resposta Garantida (TMPG) era, em Abril deste ano, de 9 374, o que é manifestamente falso. Nesta data o número ascendia a 2 645. Na primeira semana de Junho aguardavam cirurgia 2 341 doentes foram do TMPG. Convém que a “evidência” que “apoia a decisão” seja à prova de bala e imune a lapsos porventura induzidos pelo calor da luta política.

 

O Plano de Emergência da Saúde tem o subtítulo de Um Plano de Emergência e Transformação. O ex-ministro da pasta, Correia de Campos, disse, em entrevista ao Público, que ele é “um plano de emergência, não estratégico”, que parte das medidas não é nova, mas de “pura continuidade”, e que “com a consideração mítica de que o privado resolve tudo, acaba por ser estratégico nas consequências de destruição do SNS”. Confrontado com a ideia do recurso aos sectores social e privado, depois de esgotados os recursos do SNS, Correia de Campos recorda que “no sector privado mais de 70% dos médicos trabalham também no SNS”.  

 

A ideia que perpassa na comunicação social e entre os profissionais de saúde é a de ausência de resposta e “algum caos”, noticiava o Expresso esta sexta-feira, designadamente referindo-se aos hospitais de Lisboa. A ministra da Saúde foi lesta em projectar uma imagem de autoridade a roçar o autoritarismo. Consciente ou inconscientemente, preteriu o rigor em favor do ataque político ou das suas preferências pessoais. Sente-se a “rainha de Inglaterra” por não poder nomear e exonerar gestores hospitalares (prerrogativa do Direcção-Executiva do SNS). Fernando Araújo, que a ministra tratou de afastar, de acordo com declarações de gestores hospitalares ao Expresso, chegava a “contactar médicos para ‘tapar buracos’”, ou seja, fazia uma “gestão de grande proximidade”. No fundo, encaixava no perfil ministeriável. E isto é uma evidência.

O GURU DO SEXO TÂNTRICO E OS SEUS CÃES CONSELHEIROS VIA TELEPATIA

Junho 09, 2024

J.J. Faria Santos

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O homem define-se como um “anarcocapitalista”, tem publicações académicas, trabalhou como analista financeiro e, mais recentemente, fez carreira como comentador televisivo; gaba-se de ser um guru do sexo tântrico e é adepto do traço grosso no simbolismo, daí a motosserra como metáfora dos cortes orçamentais; e o seus melhores conselheiros, com quem tem conversas telepáticas, são os seus cinco cães, todos clonados, o que lhe terá custado cerca de 50 000 dólares, não duvidando nós de que, seguramente, terá efectuado uma análise custo-benefício. Eis o material de que é feito um estadista liberal latino-americano.

 

6 meses de mandato de Javier Milei na Argentina resultaram num desempenho que o previsível FMI classificou de “impressionante”, mas também numa recessão técnica. Se a inflação está em desaceleração, a taxa de pobreza aumentou para 55,5% no primeiro trimestre de 2024. Em consequência, os hábitos de consumo alteraram-se: 35% das pessoas deixaram de adquirir produtos que compravam habitualmente e 55% delas fazem as compras em função da necessidade imediata, tendo em conta ofertas e promoções. Milei congelou as obras públicas e anunciou o despedimento de 70 000 funcionários públicos.

 

O político cuja vitória foi celebrada efusivamente por militantes da portuguesa Iniciativa Liberal, entrevistado pela Time, mostrou hostilidade perante a imprensa livre, apelidando os jornalistas de “extorsionários” e “mentirosos”. A revista escreve que “muitos do que interagem com ele dizem que ele vê o mundo sob o prisma dos memes da extrema-direita”. Num acto facilmente confundível com nepotismo (mas talvez seja meritocracia…), o Presidente nomeou para Secretária-geral da Presidência a irmã, uma ex-leitora de tarot que, de acordo com a Time, agora “controla quais os jornalistas com quem o irmão fala, que fotos dele podem ser publicadas, e, alegadamente, que ministros nomear e demitir”.

 

Milei apresenta o cardápio completo dos populistas e extremistas autoritários. Despreza a igualdade de género, ataca os activistas climáticos e acha que a educação pública é equivalente a uma “lavagem cerebral”. Adepto ferrenho do mercado livre, chegou até a defender a comercialização de órgãos humanos. Como o definiu um diplomata americano, por oposição a Donald Trump, Milei é um “verdadeiro crente”, ao passo que Trump só “acredita nele próprio”. Talvez por isso, Milei, diz-se, terá feito constar que Deus o terá instigado a candidatar-se à presidência da Argentina.

 

Enquanto aguardam pela retoma que configuraria uma recessão em V, conforme prometido pelo Presidente, resta aos argentinos obter alguma forma de alívio face à dose cavalar de “liberalismo”, porventura seguindo os conselhos terapêuticos do guru do sexo tântrico. Porque afinal, como já explicava há quase 100 anos Cole Porter no tema Let’s Do It: “Some Argentines without means do it / People say in Boston even beans do it / Let’s do it, let’s fall in love”.

EVANGELHO DE MARCELO, O PIO, SEGUNDO ÂNGELA SILVA

Junho 01, 2024

J.J. Faria Santos

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Os evangelhos são um género literário que não se deve confundir com a biografia, nem com o relato jornalístico comprometido com a verosimilhança ou a fidelidade aos factos. São compostos por narrativas e testemunhos ao serviço do proselitismo. O tema de capa da revista do Expresso, que para uns é uma desajustada crónica sentimental e para outros um imprescindível retrato da solidão do poder, é, justamente, uma espécie de evangelho de Marcelo, o Pio, segundo Ângela Silva.

 

O retrato que emerge é o de um homem “atormentado pelo gozo e pela culpa”, que “tem muita noção quando peca, fica muito aflito e sofre com isso”. Como todos os santos, tem ou teve uma relação intensa com o pecado. Que ele vai a caminho da canonização, não parecem restar dúvidas: “vai vezes sem conta visitar pobres e doentes” e desenvolveu “um dom notável para falar com pessoas à beira da morte” (embora eu achasse mais relevante se ele tivesse desenvolvido um dom para falar com as pessoas depois da morte), “senta-se ao lado dos sem-abrigo na rua a comer papos-secos e leva sempre no bolso notas de cinco e 10 euros para distribuir por quem precisa”, é “desprovido de interesses materiais”, reza a toda a hora, inclusivamente a nadar e no trânsito, e “chega a ir a Fátima de 15 em 15 dias”.

 

Cultor de uma religiosidade tradicional e popular, só lhe falta alinhar com André Ventura no uso do cilício. Por agora, fica-se pelas paredes forradas  com “pagelas de santos com orações e promessas” e pelas expedições à Capelinha das Aparições. O retrato da solidão do poder, com referências à religiosidade, ao alívio da pobreza com recurso à esmola e à noção de que a indissolubilidade do matrimónio católico condena à castidade as novas relações, aproximam-no do conservadorismo e da mitologia de uma outra figura que exerceu o poder em Portugal. Marcelo angustia-se com o receio de falhar, “a sensação de permanentemente se ficar aquém”. Como o poeta Sá-Carneiro, poderia dizer: “Num ímpeto difuso de quebranto, / Tudo encetei e nada possuí…”

 

Parece evidente que o timing deste perfil, a sua natureza de radiografia privada e mesmo íntima, fica muito a dever ao facto explicitado na própria peça de a sua popularidade ter entrado em “terreno negativo”. Ora estando em causa um profundo conhecedor dos mecanismos de funcionamento dos meios de comunicação social, por um lado, e uma jornalista com um nível de cumplicidade e até admiração pelo Presidente, por outro, pode levantar-se a questão, não pondo em causa o profissionalismo daquela, se não estaremos perante uma espécie de artigo algures entre o relato em nome próprio em registo ghost writer e o perfil biográfico autorizado com recurso a testemunhos dos “amigos mais próximos”. Estaria em causa um benefício mútuo sem erros de percepção: a jornalista construiria um valioso perfil íntimo do Presidente e este, para tentar contrariar a derrapagem nos afectos dos portugueses, ver-se-ia retratado na peça como um homem de fé, preocupado com os pobres e os doentes, numa narrativa capaz de inverter o precipício da sua popularidade.

 

Se me é permitido oferecer um modesto conselho a quem pondera mais acerca da indissolubilidade do casamento do que sobre a dissolução de governos em funções, um voto de silêncio talvez fosse mais útil. Para quem tanto procura a assimilação com o povo, nada como meditar na sabedoria dos provérbios populares: quem não aparece, esquece; mas quem muito aparece, tanto lembra que aborrece.

A CRENÇA (REVISTA PELOS PARES)

Maio 26, 2024

J.J. Faria Santos

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Um estudo elaborado para a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) concluiu que uma redução da taxa efectiva de IRC em 7,5 pontos percentuais faria “aumentar o Produto Interno Bruto (PIB) em 1,44% no curto prazo (após dois anos) e 1,4% no longo prazo (após dois anos)”. Adicionalmente, fruto deste desagravamento fiscal para as empresas, a remuneração do trabalho cresce “1,79% após dez anos”. Esta conclusão acompanha a tese prevalecente sobre esta matéria: “um efeito positivo da redução da tributação em geral sobre o crescimento económico e, em particular, de determinados impostos mais penalizadores (distorcionários) da actividade económica”, como escreveu Óscar Afonso no Expresso, salvaguardando que “os estudos diferem de várias formas, desde a tributação em causa (imposto em concreto, carga fiscal em geral ou até aumento da despesa pública a financiar por impostos futuros, só para dar alguns exemplos), até às metodologias de análise e técnicas de estimação econométrica, ou ao país ou conjunto de países considerados, pelo que pode haver estudos específicos com resultados noutro sentido, mas que apenas constituem a ‘excepção que confirma a regra’”.

 

Leigo na matéria, olho para estes dados com o cepticismo de quem já viu verdades económicas absolutas revertidas empiricamente e noções comummente aceites esfumarem-se na névoa dos axiomas passados, ou servirem de pretexto para opções políticas discutíveis. O salário mínimo, por exemplo, já foi a besta negra da competitividade. Durante anos carregou-se na tecla de que os salários não podiam crescer por causa da baixa produtividade, para recentemente se ter concluído que entre 2013 e 2022 a produtividade aumentou 18,7% e os ganhos salariais apenas 10,6%. Também a propósito da descida da taxa de IRC, já se pretendeu garantir que ao induzir um crescimento económico superior esta redução seria capaz de anular a perda de receita. Este estudo é taxativo (pun intended) no desmentido, afirmando que “a despesa inerente à diminuição da receita fiscal por via da redução do IRC é financiada por um aumento do défice, e este défice é pago através de um aumento dos impostos sobre o consumo (IVA)”.

 

A tese de mestrado de Ana Maria Rêgo Lourinho (2015 – sob a orientação do professor doutor Joaquim Miranda Sarmento), subordinada ao tema “Descida da taxa de IRC e o efeito na competitividade”, testou “a correlação entre a variação da taxa estatutária e efectiva de IRC e a variação do PIB, do desemprego e do investimento”, analisando para tal os países da União Europeia no período de 1990 a 2013. Concluiu que “existe um impacto marginal e muito reduzido da variação da taxa estatutária de IRC no crescimento do PIB”, ao passo que “a redução em 1 p.p. da taxa efectiva leva a um aumento do PIB em 0,5%”. O estudo da FFMS centrou-se na taxa efectiva de IRC, para a formação da qual contribui, para além das derramas e das tributações autónomas, uma miríade de benefícios fiscais com impacto muito significativo.

 

Como fez questão se sublinhar a OCDE num estudo sobre os impostos e ao crescimento económico, “é necessário enfatizar que os decisores políticos terão de examinar muito cuidadosamente o compromisso (trade-off) entre as propostas que induzem o crescimento e os outros objectivos dos sistemas tributários – particularmente a equidade”. A organização nota, também, que reduzir a taxa de imposto sobre as empresas para um nível substancialmente abaixo da taxa máxima do imposto sobre os rendimentos singulares “pode pôr em risco a integridade do sistema tributário”, levando os contribuintes com maior rendimento a enquadrar os seus rendimentos em estruturas empresariais – algo que nós, em Portugal, poderíamos chamar, com uma dose de humor, de efeito Fernando Santos.

 

A fact sheet do estudo da FFMS indica que a taxa efectiva média de IRC é de 27,5%, tendo como referência dados da OCDE de 2022. Como este valor me pareceu exagerado, fui verificar a sua origem. O capítulo 7 do estudo refere as duas metodologias principais para apuramento da taxa de imposto efectiva: a técnica forward-looking (que depende de “pressupostos teóricos” e é utilizada pela OCDE) e a técnica backward-looking (“assente exclusivamente em dados contabilísticos das empresas”, mas que pode conduzir a algum enviesamento). Para “contornar as desvantagens” dos dois métodos, o estudo recorreu aos dados públicos da AT para o período entre 2005 e 2019, citando taxas efectivas de 27,4% para as “empresas de maior dimensão” e 25,2% para as empresas de “menor dimensão”. Os dados de 2022 já estão disponíveis e apontam para uma taxa efectiva global de 20,3%, com as empresas com um volume de facturação superior a 250 milhões de euros a suportarem uma taxa de 25,7%, e sobre os dois escalões imediatamente abaixo incidiram taxas de 22,2% (entre 100 milhões e 250 milhões) e 18,1% (entre 50 milhões e 100 milhões).

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