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NO VAGAR DA PENUMBRA

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50 SOMBRAS DE CINZA (R.I.P. NA TUMBA DA BANALIDADE)

Fevereiro 25, 2015

J.J. Faria Santos

horst_P_HORST.jpg                          Fotografia: Horst P. Horst (Courtesy of www.bertc.com)

 

Não li o livro nem vi o filme. O livro 50 Sombras de Grey foi definido por Julie Bosman no New York Times, em Março de 2012, como “uma novela erótica de uma autora obscura que tem sido descrita como pornografia para mamãs”. No mesmo artigo, a obra recebe crédito por ter “reavivado a chama de muitos casamentos” (assim uma espécie de literatura-terapia…), e uma mulher que insistiu no anonimato (ah! O apelo irresistível do interdito, do prazer secreto…) notou que “é um tabu para as mulheres admitirem que vêem pornografia”, mas é aceitável revelarem que lêem este livro, o que torna incoerente a insistência em não ser identificada.
Socorri-me do The Daily Beast para aceder aos extractos supostamente mais picantes, tentando perceber a razão de tanto alarido. Encontrei uma colecção de banalidades, lugares-comuns e erotismo de pacotilha. Mãos aqui, mãos acolá, orgãos proeminentes (ou como se diz numa certa literatura portuguesa “intumescidos”), algumas acrobacias, exclamações extáticas com vocabulário juvenil, umas palmadas medicinais, jogos com acessórios e a descrição pouco imaginativa de uma felação.
Não sei se a tradução portuguesa é mais titilante. Duvido. Num artigo do Diário de Notícias em 2008, entrevistado por Isabel Lucas, Francisco José Viegas opinava que “o nosso vocabulário de sexo é muito pobretanas”. Contradizendo esta asserção, Almeida Faria no seu romance O Conquistador alinhavara de seguida mais de duas dezenas de substantivos para designar o órgão sexual masculino (uma amostra: “…o bacamarte, o taco, a verga, o cacete, o aparelho, o viço, a piça, a peça, a alfaia, o bastão, o pau barbado…” – Edição Círculo de Leitores). Frederico Lourenço, no mesmo artigo, concluía que era fácil “cair na pornografia, na obscenidade”. A alternativa é, muitas vezes, uma descrição descafeinada, delicodoce, asséptica, escassa em carne, fluidos e fremência. A isto, é mil vezes preferível a elipse. O outro risco é o de cair no ridículo. Como a célebre citação do Codex 643 (Edição Gradiva) de José Rodrigues dos Santos demonstra: “Quando um dia for casada e tiver um filho, vou fazer sopa de peixe com o leite das minhas mamas.” Não sei se isto seria um arremedo de porn food, mas esse é o território por excelência da rainha Nigella Lawson.
Não sei se a multidão de espectadoras (e espectadores) que acorrem aos cinemas acharão o filme tão bom ou melhor que o livro. Não sei se Nicholson Baker não terá a razão do seu lado quando escreve que “ na medida em que a pornografia verbal regista pensamentos, e não exclusivamente imagens, ou, pelo menos, envolve todas as imagens em pensamentos, pode ser o meio de comunicação mais excitante de todos” ( Vox – Uma Conversa Telefónica sobre Sexo – Edição Círculo de Leitores). De qualquer forma, parece-me evidente que ninguém entrará para o visionamento do filme com a expectativa de novidades formais ou um enredo intrincado e apelativo. A inverosímil relação da ingénua empregada da loja de ferragens com o milionário dominador serve aqui de veículo para a reinvenção das práticas sexuais dos espectadores, para as tentar resgatar da monotonia. Aqui o cinema será, calculo, ele próprio, um acessório. Assim como uma espécie de dica de consultório de sexo, uma versão audiovisual dos conselhos da Maria ou da Cosmopolitan.

 

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