UI, QUE HORROR! ELE DISSE MERDA!
Outubro 31, 2013
J.J. Faria Santos
Se fosse “safa!” ou “que se lixem as eleições”, ou “estamos a discutir pentelhos”, ainda vá lá! Agora, tratar os adversários políticos por “pulhas” e “filhos da mãe”! E apodar Santana Lopes de “bandalho” e Schäuble de “estupor”! E denominar de “calvinismo reles” a posição do primeiro-ministro holandês! Já não há respeitinho! Chama-se a isto, como se apressou a notar o Público em editorial, “azedume e indisfarçada grosseria”. Só lhe faltou, sei lá, chamar-lhes “energúmenos” ou “delinquentes”… Razão tem o exterminador implacável e propagandista-mor do passismo, Eduardo Catroga, que defende que Sócrates “devia estar definitivamente enterrado” e a “ser julgado em tribunal pelos erros de gestão”. (Como se sabe, a judicialização da política é um risco em que só incorre o Tribunal Constitucional, ex-força de bloqueio e actual “interventivo decisor do processo de ajustamento”, segundo a novilíngua de Vítor Bento.)
E referiu-se a si próprio como um “moderado de merda”! Oh, ignomínia! Claro que, noutras alturas, a palavra gozou de um outro estatuto, quase como se fosse sinónimo de modernidade. David Mourão-Ferreira pôs na boca do narrador, a abrir o capítulo XVIII do seu romance Um Amor Feliz (Editorial Presença), as seguintes palavras: “O party ? Uma pepineira. Pior: uma trampa. (E perdoe a palavra, visto que hoje em dia só é de bom-tom dizer ‘merda’.)”
No party, o narrador encontrou um ministro, secretários de Estado e figuras que iam de representantes de “uma pseudo-esquerda, sempre a piscar os olhos para os da direita aparentemente ‘civilizada’ (que já os tem aliás tortos de nascença) até uma extrema-direita que finge ter perdido, por agora, as veleidades do passo de ganso (….).” Nesta celebração à beira de uma “pindérica piscina” não faltavam também “empresários pouco empreendedores”, “papagaios sempre encarrapitados nos poleiros da televisão” e “apagados tecnocratas sem cracia nem técnica”. Conclui, lá mais para o fim do capítulo, “não ser por acaso que ‘poder’ e ‘podre’, em português, se escrevem fatalmente com as mesmas letras.”
Nem merda, nem bardamerda! Na vida política portuguesa, desde que devidamente precedidos pelos vocativos “Senhor Doutor” ou “Vossa Excelência”, os mais desqualificantes insultos podem sair das bocas delicadas dos representantes da nação. Agora, mergulhar, salvo seja, na escatologia, roçar no calão ou abraçar o coloquialismo é um pecado, digamos, irrevogável. O sentido de Estado é património dos pseudo-estadistas de serenidade à prova de consciência, ora na variante do fala-barato especialista em ideologia aplicada versão reader’s digest, ora na variante savant silencioso especialista em cooperação estratégica selectiva.
O primeiro-ministro em exercício jamais balbuciaria a palavra, em público pelo menos. Instado a pronunciar-se sobre o tema diria qualquer coisa como: “não esperem de mim, só porque aludi em tempos à porcaria na ventoinha, que torne comum na linguagem política a alusão a excrementos ou à matéria fecal”. Quanto ao líder da oposição, devidamente acossado pelos jornalistas, depois de ter expelido uns quantos “qual é a pressa?”, enrugaria a fronte de incredulidade e, lábio tremelicante de indignação, soltaria um retumbante “cocó!”.